FOLHAPRESS – Toda vez que o cinema de Walter Salles deriva para um tema ou personagem direta ou indiretamente político, sua delicadeza tende a levar esse tema ou para uma esfera curiosamente apolítica.
Aconteceu assim com Che Guevara, por exemplo. Tratando da formação do futuro revolucionário, nos introduz a sua viagem de motocicleta por países da América Latina. No entanto, é difícil (talvez impossível) conectar sua peregrinação, frequente naquele momento, com o que ele viria a se tornar.
Tratando do sequestro, tortura, assassinato e morte do ex-deputado Rubens Paiva por militares do exército brasileiro, sua delicadeza o leva a colocar a ênfase seja no heroísmo de Eunice, mulher de Rubens Paiva, seja no destino familiar, desmantelado pelo desaparecimento do seu chefe, e reconstruído graças à atividade da viúva.
A construção do roteiro indica boa parte desse percurso. O que vemos, no início, é uma família de classe média alta que podemos tanto chamar de feliz quanto de “normal”. O pai engenheiro ocupa-se dos negócios da casa; a mãe ocupa-se dos filhos, que por sua vez estudam e/ou se divertem na praia e com os amigos.
Esse cenário idílico transforma-se do dia para a noite, com a prisão de Rubens. Entendemos que toda a narrativa se constrói do ponto de vista da mulher, Eunice, e pode-se aceitar que fosse completamente alheia às atividades políticas do marido.
Por um instante, a iluminação parece nos jogar em um filme de terror: o que aconteceu com Rubens, quando voltaria, etc. A situação não se suaviza, mas passa por uma estabilização no instável.ada como ter um carro vigiando seus movimentos e sua casa o tempo todo!
É a partir daí que Eunice se notabiliza, seja por administrar a situação dos filhos, seja por buscar informações sobre o marido. É quando descobre, conversando com um amigo dele, que Rubens não era tão apolítico quanto parecia.
O ex-deputado fazia um trabalho de apoio aos guerrilheiros e aparentemente apenas isso, como tantas outras pessoas fizeram. O que justificou o seu sequestro foi, portanto, o fato de ser um personagem importante da oposição ao golpe de 1964, quando era deputado.
Sua prisão não foi um acaso, nem foi a prisão de um “inocente”. Elas existiram. A eventual inocência de Paiva não está em questão no filme, e sim as decorrências do sequestro.
Essa despolitização dos acontecimentos, que prosseguirá na medida em que a política é praticamente alijada do filme, embora passe a fazer parte importante na vida de Eunice, não se deve a uma opção por mascarar os fatos mais violentos daquele período. Longe disso. O filme ainda introduz alguns elementos de clara acusação dos responsáveis. O mais evidente é o retrato do então presidente Garrastazu Medici. O segundo, mais humano, é do soldado que confessa a Eunice não concordar com aquilo a tortura, em uma maneira de dizer que os responsáveis não são os soldados, mas os que mandam neles.
O caráter ambíguo do filme, que chama para um tema político e termina tocando um assunto familiar me parece que se deve ao temperamento delicado de seu realizador. Por mais atroz que sejam os acontecimentos que tenha em mãos, é sempre para uma suave conciliação que o filme caminha.
Salles fez o filme que quis, com toda precisão possível, abordando um fato político com ressonância histórica. Não foi infiel ao tema, não dirigiu mal seus atores ou técnicos. Mas não se pode fugir de seu temperamento, que não parece o melhor para fazer esse tipo de filme.
Nesse sentido, é bem evidente que “Central do Brasil”, um filme da regeneração nacional, continua a ser o trabalho que melhor representa o seu diretor.
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INÁCIO ARAUJO / Folhapress