VENEZA, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – Na manhã deste domingo (1º), no Lido, ilhota quase colada a Veneza onde acontece o festival de cinema mais antigo do mundo, cerca de 1.500 pessoas assistiram à primeira exibição pública do novo filme de Walter Salles, “Ainda Estou Aqui”.
Pela reação inicial do público, dá para dizer sem muito medo de errar que este é o longa-metragem mais profundo e completo entre os concorrentes ao Leão de Ouro de 2024. Não que eu tenha a mínima pretensão de ser objetiva ao fazer essa definição, verdade seja dita. Muito do que me fez vir a este festival foi, além do convite oficial, a curiosidade de ver justamente este filme.
A união de Walter Salles, diretor dos incríveis “Central do Brasil” e “Terra Estrangeira”, Fernanda Torres, uma das atrizes mais empolgantes e surpreendentes do Brasil e Marcelo Rubens Paiva, neste projeto, é como se um “dream team” tivesse sido escolhido a dedo para contar uma história que minha geração, de quem foi adolescente nos anos 1980, não tinha visto na tela de uma forma tão tocante até agora. A história da ditadura militar.
Paiva, autor do best-seller “Feliz Ano Velho”, de 1982, lançado portanto ainda durante a ditadura, conquistou os jovens leitores da época com a história do acidente que o tornou paraplégico aos 19 anos. O livro também contava, paralelamente, a história do desaparecimento de seu pai, o ex-deputado Rubens Paiva.
Foi a primeira vez que um relato que interessava aos jovens despertando para a vida e para a literatura naquele momento falava sobre a ditadura. Como regime, a ditadura brasileira já estava meio capenga nos anos 1980, e isso não era um assunto lá muito atrativo para uma adolescente.
Mas Marcelo Paiva, com seu estilo meio beatnik de escrever, fez muita gente entender que aquela conversa chata dos adultos tinha muito a ver com a gente. Com todo mundo, aliás.
Então, em 2015, Marcelo lançou “Ainda Estou Aqui”, um livro ainda mais bem escrito que “Feliz Ano Velho”, dessa vez contando a história de sua mãe, Eunice, uma personagem que parecia trágica no primeiro livro, uma mulher que perde o marido provedor e cujo único filho homem sofre um acidente que o deixa paraplégico.
Eunice surge como uma super-heroína no segundo livro. Uma super-heroína pós-feminista, pós-qualquer tipo de rótulo barato, que faz questão de sorrir para as câmeras como uma forma de resistência e que luta pela demarcação das terras indígenas muito antes de a gente ter que escrever “indígenas”.
Com duas horas e quinze minutos de duração, o filme se passa em três períodos marcantes da vida da protagonista.
Tudo começa no início dos anos 1970, quando os Paiva viviam na frente da praia do Leblon, no Rio de Janeiro, em uma casa grande, cheia, barulhenta, amorosa, com as filhas mais velhas entrando na adolescência e os mais novos, como era o caso de Marcelo, o único menino, brincando solto no mar, rodeado de amigos e agregados.
Era uma família que vivia como se o Brasil já fosse o tal “país do futuro” de que tanto se falava naquela época. Tinham um projeto de construir uma casa ainda maior, onde cada filho teria seu próprio quarto, recebiam amigos de todas as idades e todo mundo convivia como se, de fato, a vida fosse melhorar.
Tinham uma empregada doméstica para dar conta do serviço da casa mas que fazia as refeições junto com a família e os amigos. Era uma família burguesa, sim, mas fundamentalmente humanista.
O Brasil vivia sob uma ditadura militar, Rubens Paiva tinha sido cassado alguns anos antes e forçado a deixar a política, havia gente exilada, sequestros de embaixadores, violência policial, luta armada. Mas, naquela família barulhenta, cheia de vida, de arte, de encontros, de luz, de sol, a esperança de um Brasil melhor parecia algo latente, que se podia quase tocar.
Pelo menos é assim que Walter Salles reproduz os Paiva na primeira parte de seu filme. Eunice nada vigorosamente no mar do Leblon, Rubens faz graça com as filhas, fuma charutos e confabula com Marcelo para jogar pebolim tarde da noite, escondido da mãe e das irmãs.
O som da vitrola se alterna conforme Nalu, Eliana e Veroca, as irmãs mais velhas, botam os novos LPs que trazem para casa, e assim a Tropicália entra na sala da família e nos ouvidos de todos os amigos que a frequentam.
Um deles era o próprio diretor do filme, Walter Salles, que disse na entrevista coletiva que aconteceu logo depois da primeira exibição do longa, em Veneza, que sua relação com a história dos Paiva começou na sua adolescência, quando fez amizade com Nalu e passou a frequentar a casa do Leblon, como tantos outros amigos.
Fernanda Torres vive Eunice intensamente, mas sem deixar o esforço aparente, é quase uma metamorfose, não uma atuação. A mulher apaixonada pelo marido e mãe de cinco crianças, que vê sua vida desmoronar, não se deixa dominar pelo horror da situação.
Um horror que acontece com ela também, que é presa e interrogada durante 12 dias, junto de uma de suas filhas mais velhas.
Sem dinheiro e sem ter como explicar aos filhos o que teria acontecido com o pai, já que ela só teve essa certeza quase 30 anos depois, Eunice toma a rédea de sua vida e da criação de seus cinco filhos, que ela proíbe que pareçam tristes publicamente. Muda-se de volta para São Paulo, para ficar perto dos pais, e decide voltar a estudar.
O segundo momento do filme acontece 25 anos depois, já no meio da década de 1990, portanto mais de dez anos depois do acidente do filho, da publicação de “Feliz Ano Velho”, best-seller instantâneo que deu origem a uma peça-fenômeno logo em seguida e fez do nome Marcelo Paiva a grande promessa da literatura brasileira e a cara do que seria a juventude dos anos 1980.
Nada disso está no filme, uma opção talvez por não contar mais uma vez uma história célebre. Mas são passagens determinantes na vida daquela mulher, certamente, e das quais senti falta na trama.
Na segunda parte do filme, bem mais sombria, Eunice já está completamente mergulhada na luta pela demarcação das terras dos povos originários, quando recebe uma notícia pela qual batalhou por mais de duas décadas: o certificado de óbito de seu marido. A confirmação, afinal, de que Rubens Paiva foi torturado até a morte por agentes da ditadura naquele janeiro de 1971.
Ao receber o documento, Eunice, serenamente, diz aos repórteres e fotógrafos que cobrem o evento que acredita que todos os crimes devem ser punidos e todas as famílias prejudicadas devem ser indenizadas. E sorri ao posar para os fotógrafos. É uma vitória triste, mas é uma vitória.
A parte final, a mais curta, corresponde ao fim da vida da protagonista, agora interpretada por Fernanda Montenegro, e já completamente tomada pelo Alzheimer, de cadeira de rodas, alheia ao barulho que agora são os netos que fazem à sua volta.
Ali ela só parece voltar à vida ao observar atentamente uma reportagem na televisão que fala justamente de Rubens Paiva. É o último lampejo de memória, e também o fim de um filme inesquecível.
TETÉ RIBEIRO / Folhapress