PARATY, RJ (FOLHAPRESS) – A postura de Akwaeke Emezi tira inspiração de uma frase de Toni Morrison, Nobel de Literatura negra e pródiga em abalar olhares artísticos. “Eu fiquei de pé na fronteira, fiquei bem na borda, reivindiquei ali como o centro e deixei o mundo se mover para onde eu estava.”
Emezi nasceu na Nigéria há 36 anos, mora desde a juventude em Nova York, nos Estados Unidos, e cria literatura que voa como um sopro de ar fresco –se identifica como uma pessoa não binária e não tem a menor dúvida de que seu olhar está no centro, e não na periferia.
Seu primeiro livro, o romance “Água Doce”, foi publicado por aqui pela Kapulana e é narrado na primeira pessoa do plural pelo espírito ogbanje da protagonista, chamada A Ada, observando sua existência humana e corpórea de fora. Se parece uma narrativa intrincada e difícil de entender, não se engane: é absolutamente sedutora.
“A primeira loucura foi que nascemos, que enfiaram um deus em um saco de pele”, diz uma citação memorável do livro, cartão de visitas de seus narradores, que surgiram de inspirações totalmente autobiográficas. Na perspectiva ocidental a que estamos acostumados, soa inovador. Até fantástico.
“É aí que eu pego você”, diz Emezi apontando o dedo e sorrindo com charmosa sisudez ao repórter, à beira da piscina de uma pousada em Paraty na manhã desta quinta. É a véspera de sua aguardada palestra na Flip. “Isso é a ideia de que, se você fala de uma realidade indígena, é fantasia. Fantasia significa que não é real. Por que achar que, se é algo espiritual, não é real?”
Quando a colonização tomou a África há séculos, continua Emezi, os europeus vieram e “substituíram a realidade”. Disseram que tudo em que aquelas comunidades nativas acreditavam não era verdade, simplesmente “porque nós estamos dizendo”. E esse tipo de pensamento segue vivo até hoje, mesmo que não percebamos.
“Essa é a definição de supremacia branca. ‘Minha realidade é verdadeira e a sua, não.’ Todo o resto é fantasia, é invenção, superstição, paganismo, está ao contrário. Então ‘Vivek Oji’ é, sim, ficção baseada no real, só não é uma realidade branca.”
“A Morte de Vivek Oji”, o livro citado, é seu romance mais vendido e premiado, publicado no ano passado pela Todavia. Conta a história de uma pessoa de gênero fluido que nasce, vive e morre em meio à incompreensão fatal das pessoas à sua volta –narrado com sensibilidade pelos pontos de vista diversos daqueles que lamentam ter perdido alguém que nunca chegaram a conhecer de verdade.
Não que Emezi não tenha interesse em literatura de fantasia, muito pelo contrário. “Por eu ter escrito livros tão sérios e por ficção literária ser considerada chique, as pessoas ficaram surpresas quando comecei a escrever literatura comercial. Mas é isso que eu leio.”
“Não leio ficção literária porque é deprimente”, afirma, antes de soltar uma risada. “Eu não leria meus livros, eles são bons, mas vivemos num mundo tão difícil que quando leio algo assim, me deprimo. O mundo já é um saco e agora o livro também é um saco?”
Por isso surgiram obras como seu mais recente e mais sexy romance, “Você Fez a Morte de Tola com Sua Beleza” –publicado pela Alta Books e forte candidato a título mais bonito da Flip– e “PET”, um livro leve voltado ao público adolescente. A sugestão de escrever um volume classificável como “young adult”, afirma Emezi, veio de sua agência literária num momento de pindaíba.
Emezi não usa nenhum tipo de reverência para falar de literatura –é um trabalho que faz com gosto, mas que serve para pagar as contas. Produzindo como máquina, publicou sete livros nos últimos cinco anos, quatro deles lançados no Brasil. E chegou a adoecer por fazer de forma frenética demais o que, durante toda a juventude, sempre fizera com prazer.
Por isso, agora que começou uma carreira na música como um desdobramento natural de seu ofício de poeta–procure por Akwaeke no Spotify– está tomando cuidado. “Não quero que aconteça o mesmo que aconteceu com a literatura –antes algo que eu fazia por lazer virou um trabalho. O capitalismo tem dessas.”
WALTER PORTO / Folhapress