Alana Portero e Mónica Ojeda debatem violência e literatura na Flip

PARATY, RJ (FOLHAPRESS) – O encontro da equatoriana Mónica Ojeda com a espanhola Alana Portero na tarde desta quinta era um dos mais aguardados momentos desta Flip e passou longe de decepcionar.

A conversa sobre a relação do corpo com a literatura mostrou que a aproximação das autoras tinha toda a razão de ser, numa conversa habilmente mediada pela jornalista e poeta Stephanie Borges.

É claro, houve intercorrências. A primeira pergunta passou batida às entrevistadas durante minutos meio constrangedores até que se entendeu que elas estavam sem tradução simultânea no ouvido.

Mas, logo em seguida, Ojeda fez uma fala contundente sobre como todos os seres humanos têm “medo da capacidade sensível do corpo”. “Ele não para de sentir, e isso pode ser avassalador. Meu interesse é explorar essas potênciais sensíveis, o que o corpo pode dizer além das palavras.”

Na literatura perturbadora da autora latino-americana, que publicou o romance “Mandíbula” e os contos de “Voladoras” pela Autêntica, as mulheres são personagens movidas pelo gutural, por reações que nem sempre entendem ou podem explicar com racionalidade.

O resultado são narrativas assustadoras em que se sente tensão em cada entrelinha, como no romance de forte potência sexual em que uma professora sequestra uma aluna que enxerga como pervertida –e não se demora a notar que a perversão na verdade vem de raízes incompreendidas da mestra.

“É no nosso corpo que tudo nos acontece”, acrescentou Portero, por sua vez. “O primeiro sinal é dele. As emoções vão depois.”

A escritora é uma aposta quente da Record, que publica seu “Mau Hábito” como estandarte do novo selo Amarcord. O romance de formação, estreia literária da autora trans, retrata o crescimento de uma menina nas periferias madrilenhas e foi sensação entre editoras na penúltima Feira de Frankfurt, arrebatado por casas de 12 idiomas diferentes.

“A construção da intimidade tem menos a ver com o que nos passa por dentro e muito a ver com o que nos acontece fora”, afirmou Portero, argumentando que por isso a ambientação em bairros operários e na cena dark espanhola é essencial para contar a história de descobrimento da jovem protagonista.

“As pessoas funcionam no livro como oráculos, oferecendo revelações à protagonista conforme ela passa por eles”, apontou uma escritora “totalmente formada pela leitura de mitos gregos”. “É uma estrutura épica clássica trazida ao contemporâneo, com uma mitologia de figuras pop cumprindo a função das antigas deidades.”

É algo que conversa com a fala de Ojeda sobre as construções narrativas de “Voladoras”, que pensam maneiras de evitar reproduzir as mesmas violências que interferem sobre nossa vida.

A equatoriana argumentou que temer e desejar são sentimentos que “andam de mãos dadas”. “O desejo é uma das mais fortes emoções, mas está ligado à fragilidade. É como querermos falar aqui nesta mesa enquanto estamos assustados com a chance de a chuva fazer desabar o teto”, disse a equatoriana, sob o rumor constante do temporal que caía. “Não há o que fazer senão conviver com a vulnerabilidade.”

As obras de Ojeda são intensamente violentas, não por acaso. “Não há como pensar na violência sem pensar naquela que nos habita. Não é algo que acontece conosco, mas algo que está em nós.”

Instada por uma pergunta da mediadora sobre as violências políticas na América Latina, a escritora diz que nunca as entenderemos no quadro mais amplo se não pensarmos no porquê de acontecerem no íntimo.

“Se não fizermos isso, estamos condenados a repetir o padrão para sempre”, afirmou, acrescentando acreditar no poder na literatura para empurrar a humanidade lentamente na direção certa. “Sempre achei que a escrita é o oposto da violência, mesmo quando ela fala diretamente sobre isso. Porque o que a violência diz é que não se pode pensar.”

A Flip continua até domingo em Paraty, no Rio de Janeiro, com mesas na programação principal e paralela ao longo de todos os dias.

WALTER PORTO / Folhapress

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