BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) – “Chegava o fim de semana e alguém dizia: ‘Cara, vamos fazer um churrasco?'”, afirma o locutor enquanto um argentino cabisbaixo se aproxima da churrasqueira, tomando um mate.
No lugar da carne na grelha, uma pilha de tralhas. “Daqui a pouquinho, tudo vai melhorar”, encoraja o narrador enquanto a imagem se dissolve dando lugar a dois nomes, Alberto e Cristina.
O vídeo era de 2019 e propagandeava a chapa de Alberto Fernández e a vice Cristina Kirchner à Presidência da Argentina, mas, quatro anos depois, poderia ser de qualquer um de seus opositores.
Se quando o peronista assumiu, a população já diminuía a frequência do “assado”, agora que ele deixa o cargo a tradição virou privilégio no país vizinho.
Entenda a crise econômica e a inflação sem freio na Argentina Fernández entrega o bastão ao ultraliberal Javier Milei neste domingo (10) com uma inflação anual três vezes mais alta e um dólar paralelo 13 vezes mais caro do que quando tomou posse, o que nas ruas representa um crescimento da pobreza.
Também termina o mandato reprovado por 80% dos argentinos e marcado pela fama de sumido.
Por outro lado, é lembrado por ter diminuído o desemprego e feito alguns investimentos estratégicos na área de energia, por exemplo, que poderão ser aproveitados pela próxima gestão.
Ele se defende dizendo que atravessou uma pandemia, a guerra da Ucrânia e uma seca histórica. Mas os argumentos não parecem ter convencido a população, que deu ampla vantagem a Milei nas urnas.
A parte ruim é lembrada pelo argentino no supermercado todos os dias.
“Na minha família, fazíamos churrasco quase todo domingo, agora é uma vez a cada dois meses”, diz a advogada Carolina Rojas, 28, cujos pais e a irmã moram em Hurlingham, cidade na província de Buenos Aires, a cerca de 30 km da capital.
“Mas não é só o churrasco, é a carne de vaca em geral. Antes eu comia três vezes por semana, agora é só uma e substituo por frango ou porco. Também passei a procurar sempre as marcas mais baratas, e não mais as melhores”, conta ela, ainda que hoje more sozinha em Palermo, um dos bairros mais caros de Buenos Aires onde a maioria dos aluguéis é cobrado em dólares.
Se em dezembro de 2019 um quilo de carne custava em média 303 pesos, em outubro deste ano já valia 3.162 –dez vezes ou 944% mais–, segundo os últimos dados do IPCVA (Instituto de Promoção da Carne Bovina Argentina).
Os preços em geral cresceram 850% nesses quase quatro anos, mais do que os salários, e a batalha declarada por Fernández à inflação acabou sendo sua maior derrota.
“Já estava ruim e terminou pior”, resume o economista argentino Ignacio Galará, do Centro de Estudos Monetários e Financeiros de Madri.
Seu antecessor Mauricio Macri, diz, deixou uma inflação em alta, a economia igualmente estancada, o desemprego próximo dos dois dígitos, poucas reservas de dólares, restrições cambiais e uma dívida externa exorbitante com o FMI (Fundo Monetário Internacional).
Por outro lado, “a pior decisão de Fernández foi não tomar decisões”, afirma.
“A cruzada contra a inflação foi tonta e ineficiente. Foi feita com controles de preços, brigas com os produtores e operações para reprimir as casas de câmbio paralelas, em vez de considerar que todas essas restrições internas é que efetivamente causam o aumento de preços.”
Nem tudo começou mal. Fernández, que é amigo do presidente Lula, iniciou seu governo com uma aprovação próxima aos 70%, visto como exemplo por impor as restrições de circulação recomendadas por cientistas no início da pandemia em 2020.
Mas o lockdown se prolongou, a economia sentiu, e no fim daquele ano sua aceitação já caía a 30%, segundo dados da Universidade de San Andrés.
No ano seguinte, a situação política foi se deteriorando a ponto de uma briga com sua vice, Cristina, tornar-se pública e acabar com a debandada de ministros ligados ao kirchnerismo.
Em 2022, o presidente enfrentou uma nova corrida inflacionária e trocou duas vezes o titular da Economia em um mês, sendo o último deles Sergio Massa, que mais tarde virou o candidato do peronismo.
Assim, Fernández foi vendo seu poder se esvair.
“A sensação é que ele não governa há um ano e meio. A guerra da Ucrânia e a subida dos preços do combustível, por exemplo, poderiam ter feito a Argentina muito competitiva, estando tão barata para o mundo. Mas, com tantas restrições, tivemos as oportunidades desperdiçadas”, diz Galará.
A seca agravada pelo fenômeno climático La Niña, então, derrubou as exportações do país e fez as reservas de dólares ficarem ainda mais escassas, outra má notícia para a inflação.
Fernández usou a imagem das plantações esturricadas como uma das justificativas para desistir de concorrer à reeleição: “A seca nos obriga a redesenhar todos os nossos objetivos”, disse em abril.
Para Carla Arévalo, do Ielde (Instituto de Estudos de Trabalho e Desenvolvimento Econômico), os resultados não foram tão ruins considerando o contexto.
“Houve um nível de atividade e consumo muito altos, causados pela inflação mas também por políticas de fomento. As obras públicas, o sistema de proteção social e os subsídios à indústria e às empresas estimularam a empregabilidade”, diz.
De fato, o emprego é uma área que Fernández pode comemorar. O presidente pegou o índice em 8,9%, viu ele subir a 13,1% na pandemia e o deixou em 6,2% a Milei, ainda que com um pouco mais de informalidade.
Outra herança são as avançadas obras do gasoduto que, em tese, vão permitir a independência energética do país até 2025, distribuindo o gás de xisto da sua massiva formação geológica Vaca Muerta.
Em seu último discurso antes de deixar a Casa Rosada, em cadeia nacional nesta sexta (8), ele intercalou autocríticas com essas vitórias da sua gestão.
“Sabemos que não alcançamos os objetivos que estabelecemos”, admitiu. “Porque as circunstâncias e o contexto não estiveram a nosso favor e também porque deveríamos ter feito melhor.”
Na segunda (11), logo depois de passar a faixa a Milei, ele partirá para a Espanha, onde sua família o espera.
JÚLIA BARBON / Folhapress