Álbum íntimo de Marcos Sacramento une os batuques da Bahia ao samba carioca

RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Há muitos arcos dentro de “Arco”, novo disco do cantor e compositor Marcos Sacramento. Há o arco geográfico que começa na Bahia, de onde ele veio “no ventre da avó”, e chega à baía de Guanabara, onde ele se espalha entre Rio e Niterói. Há o amplo arco de gêneros musicais, que passa pelo samba à la Elis Regina, pela latinidade, pelo batuque dos terreiros, por ecos de Ennio Morricone, pelo samba-reggae. Há os Arcos da Lapa. Há o arco e flecha de Oxóssi.

Há um grande arco que dá sentido a tudo, no entanto: a própria história de Marcos Sacramento -que traz “arco” incrustado em seu nome. Estão ali no disco o grande amor de sua vida, a vida intensa que experimentou na década de 1980, sua relação com o Rio, sua ancestralidade, o alcoolismo que ele mantém controlado há 24 anos, a devoção ao samba.

Ou seja, é um álbum profundamente íntimo, mas nunca introspectivo. “Arco” é expansivo em seus arranjos -pilotados pelo produtor Elísio Freitas- e na voz quente do autor. Parceria sua com Luiz Flavio Alcofra e Phil Baptiste, “Guanabara” é uma das canções que aponta essa dualidade.

“‘Caía de boca e cara/ Nas maravilhas cruéis/ Das barcas, das madrugadas/ Vida da cabeça aos pés”, diz Sacramento, declamando versos. “É algo íntimo da minha vida, da minha relação com essa baía, da minha boemia, do meu alcoolismo. Mas é íntimo e, ao mesmo tempo, é aquele samba que com cara de jongo, que começa com aquela batucada para botar o pessoal para dançar”.

A canção que disparou o processo do disco evoca outra baía, a de Todos os Santos. “Bahia-Rio” nasceu de uma melodia que Alcofra apresentou a Sacramento num momento em que, finda a pandemia, o compositor começava a imaginar quais seriam seus próximos horizontes.

“Estava com muita vontade de falar das minhas origens e da minha ancestralidade, coisa que eu ainda não tinha feito explicitamente”, explica o cantor. “Eu vim da Bahia no ventre da minha avó, como eu digo na letra. Meus avós maternos são baianos. A partir daí, comecei a pensar nesse arco da minha vida até aqui”.

Sacramento desenhou o disco ao lado de Phil Baptiste, que assina a direção artística, e Elísio Freitas, produtor musical do disco. Foi Phil quem sugeriu que ele cantasse “Todo amor que houver nessa vida” -lançada no primeiro disco do Barão Vermelho e já gravada por Caetano Veloso e Cássia Eller, entre outros- depois de vê-lo num antigo programa “Ensaio” entoando seus versos de improviso.

“Num determinado momento do programa, Fernando Faro me pediu para falar dos anos 1980”, diz Sacramento, que no disco divide os vocais na gravação com Zé Ibarra.

“Logo em seguida, ele corrigiu e disse: ‘Melhor, canta alguma coisa que represente os anos 1980 para você’. Cantei ‘Todo Amor que Houver nessa Vida’. Não pensei, ela veio imediatamente na minha cabeça. Sou contemporâneo do Cazuza. Não conheci ele pessoalmente, nunca trabalhei com ele, nunca cantei com ele, mas vivi na mesma época que ele, na loucura dos anos 1980”.

A canção abre o disco e prepara terreno para o samba “Voltei”, parceria de Baden Powell e Paulo César Pinheiro que serve de carta de intenções: “Voltei/ Hoje a lua não vai me abandonar/ Hoje a rua vai ter que se enfeitar/ Quero ouvir meu portão bater/ Quero ver minha casa encher”.

Há um ano, a casa cheia de Sacramento é mais do que uma metáfora. Desde novembro de 2023, ele comanda o Samba do Sacramento, roda realizada uma vez por mês no Centro do Rio que atrai a cada edição uma multidão, majoritariamente de jovens entre os 20 e 30. Assim como o disco, o evento afirma o desejo de Sacramento de, aos 64 anos, se afirmar num mercado musical marcado pelo etarismo, como ele argumenta.

“Um artista com 64 anos, mesmo estando trabalhando há 40 anos, se não conseguiu chegar a certo nível de sucesso comercial, é invisível para as curadorias dos festivais”, nota o cantor.

“A gente tem que falar disso. Aos 64 anos, eu tô no auge da minha carreira. Produzindo, cantando, gravando disco novo. Eu tô aí, é só prestar atenção. O Hermínio [Bello de Carvalho] costuma falar que não descobriu a Clementina de Jesus, só prestou atenção nela. É preciso que os curadores, os produtores, os contratantes comecem a prestar atenção. Essa mentalidade precisa mudar, assim como tantas outras estão mudando.”

Reforçando as palavras de Sacramento, “Arco” é um disco contemporâneo. As participações vocais de Zé Ibarra em “Todo Amor que Houver nessa Vida” e de Josyara em “Bahia-Rio” são apenas manifestações mais evidentes disso.

Os arranjos de Elísio carregam uma inventividade consequente e sem deslumbre. É o que acontece na venezuelana “Tonada de Luna Llena”, que ganha uma ambiência de faroeste spaghetti, com a participação de músicos como Kassin e Marcelo Galter.

É também o que se dá também em “Graça”. Composta por Thiago Amud, a canção, que anuncia um futuro afirmativo, serviu como uma espécie de hino para Sacramento ao longo da pandemia. Amud também assina o arranjo de sopros de “Para Frido”, canção que Sacramento escreveu para o homem que é “o grande amor da minha vida”.

“Thiago foi muito feliz no arranjo porque a minha relação de amor com o Frido é turbulenta, é um amor meio Angela Ro Ro. Mas é um amor que não tem fim. O arranjo do Thiago é rascante, confere um mistério que dá conta disso”.

Sacramento conta que boa parte dessa turbulência amorosa se deve à forma como ele lidava com o álcool na época, ao longo dos anos 1990. “Jesus é Preto”, parceria sua com Paulo Baiano, documenta esse período numa crônica de bar que relata o dia em que o cantor encontrou um Jesus negro num botequim. Os arranjos dos sambas cantados por Elis Regina, cantora que é referência central do artista, serviram de inspiração para a sonoridade da faixa.

O samba-enredo “Xangô”, do Salgueiro, aparece no disco cantado a capella, com efeitos na voz, deslocado de seu lugar de costume. “Niterói”, outra canção que mapeia a geografia de Sacramento, foi feita por ele em parceria com Manu da Cuíca, Luiz Carlos Máximo e Fernando Leitzke Júnior. Mais do que a cidade, a letra mira a ponte -que, nota o cantor, “no vão central também forma um arco”.

Apenas com tambores de Leonardo Dias e a voz de Sacramento, a faixa-título fecha os arcos do disco. E sugere mais uma camada de sentido a eles, ao fazer o fim da palavra “respirar” se transformar no início da palavra “arco”, na letra que se repete em ciclos, como um mantra, como o horizonte da Lapa.

ARCO

Onde Disponível nas plataformas de streaming

Autoria Marcos Sacramento

Gravadora Selo Biscoito Fino

LEONARDO LICHOTE / Folhapress

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