SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Marcada em anos recentes por episódios de assédio, racismo e machismo, a Assembleia Legislativa de São Paulo terá uma cartilha de comportamento com orientações como pensar duas vezes antes de distribuir beijos e abraços e evitar falas que sejam vistas como gordofobia, etarismo e capacitismo.
O manual voltado para deputados e funcionários, que será lançado nesta quinta-feira (21), explica vários tipos de discriminação e busca auxiliar tanto a prevenção quanto a denúncia de casos.
A elaboração do material foi conduzida pela direção da Casa, com a participação de todas as 25 deputadas da atual legislatura, de partidos que vão do PT ao PL. Um episódio de racismo relatado por uma delas, Thainara Faria (PT), acelerou a preparação do texto, como mostrou a Folha de S.Paulo em abril.
Em 70 páginas, a cartilha aborda didaticamente tópicos sensíveis para listar comportamentos desejáveis e reprováveis no ambiente de trabalho. Na introdução, o presidente da Assembleia, André do Prado (PL), afirma que assédio sexual e moral e discriminação não serão tolerados no espaço.
“Na dúvida, não abrace e não beije. Estenda a mão em um cumprimento cordial, que é um gesto simples, inofensivo e demonstra educação”, diz o trecho sobre atitudes incômodas e inadequadas. “Não é não”, prega o manual, repetindo o bordão usado nas campanhas sobre consentimento.
O ex-deputado Fernando Cury (União Brasil) responde a uma ação penal de importunação sexual em que é acusado de ter apalpado a ex-deputada Isa Penna (PC do B) no plenário da Assembleia em 2020. Ele foi flagrado pelas câmeras tocando a lateral do corpo dela durante uma sessão.
O novo código interno não cita episódios específicos, mas alude a casos de discriminação, preconceito e agressividade que se tornaram frequentes na Casa por causa do perfil mais plural, com a ascensão de nomes radicalizados à direita e a eleição de mais mulheres, negros e transexuais.
Na atual legislatura, Thainara Faria trouxe a público em março o caso de uma funcionária que tentou impedi-la de assinar um livro de presença por não tê-la reconhecido como parlamentar. A petista, que é negra, chorou nas redes sociais e na tribuna ao relatar o que classificou como racismo estrutural.
A cartilha explica diferentes tipos de discriminação racial, reforça as punições e lembra que os crimes contemplados pela Lei do Racismo hoje são equiparados à discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero. Há explanações também sobre transexualidade e LGBTfobia.
Quando o conteúdo começou a ser discutido e foi aberto para contribuições de parlamentares, deputados conservadores sugeriram vetar o uso da palavra “gênero”. Na versão final, contudo, o termo foi mantido. Também foi retirado do texto o verbo “esclarecer”, que desagrada a alas da militância negra.
Para Monica Seixas (PSOL), a questão racial acabou descrita de forma superficial, sem um esforço pedagógico. “Há uma explicação genérica do que é racismo estrutural e institucional, mas não se aprofunda nas nuances da diferença entre racismo e injúria racial”, diz a deputada.
Durante as discussões sobre o conteúdo, parlamentares tentaram distorcer o objetivo ao propor regras de vestimentas para mulheres, segundo Monica. “O processo de construção da cartilha não foi fácil. Ainda assim, considero uma vitória das mulheres termos conseguido chegar até aqui.”
A Alesp informa no texto os meios para denunciar e cobrar punição por casos de inconformidade que venham a acontecer e diz que criou um canal de denúncias próprio, com sigilo garantido.
Há, contudo, a advertência de que o relato deve apresentar “o autor da irregularidade, a descrição verídica dos fatos e a indicação de provas ou testemunhas” e que “denúncias infundadas ou não comprovadas poderão caracterizar denunciação caluniosa e estarão sujeitas às sanções previstas em lei”.
O manual também repudia a discriminação com pessoas acima do peso (gordofobia), a reprodução de estereótipos relacionados à idade (etarismo), gestos degradantes contra mulheres (misoginia) e o preconceito com pessoas com deficiência (capacitismo).
A deputada Andréa Werner (PSB) diz que a primeira versão que recebeu do guia estava problemática porque praticamente excluía o tema das pessoas com deficiência, pauta central de seu mandato. Outra crítica dela foi à definição rasa de assédio, deixando de fora uma série de variações.
“As sugestões que fiz foram acatadas. Fico com esperança de que a cartilha possa proporcionar uma mudança de cultura dentro da Alesp”, afirma Andréa.
O texto também caracteriza o discurso de ódio, dizendo que não pode ser confundido com liberdade de expressão. Há ainda avisos sobre bullying e formas de hostilidade que ocorrem na internet, como o cyberstalking (perseguição virtual) e o doxing (vazamento de dados pessoais da vítima).
Um dos alertas é o de que autoridades e servidores públicos têm responsabilidade maior que a de cidadãos comuns. “Os agentes que ocupam a Alesp devem se pautar pelos padrões da ética, sobretudo no que diz respeito à integridade, à urbanidade, à conformidade, aos regulamentos e ao decoro.”
A Casa reitera a necessidade de honrar a liturgia do cargo, com “comportamento compatível” com o que se espera de ocupantes de funções públicas. Em 2019, um deputado deu uma mordida no ombro de um colega durante uma briga generalizada no plenário em meio à discussão da reforma da Previdência.
Como a cartilha também é voltada aos servidores, há orientações mais genéricas sobre o que fazer e o que não fazer no local de trabalho.
São atitudes negativas, segundo o guia: defender verdades absolutas, reclamar demais, fazer fofoca, ser inflexível, não estabelecer metas, ter desequilíbrio emocional e desvalorizar o trabalho do colega.
“Boatos e ‘diz que diz’ prejudicam a harmonia e a boa convivência do coletivo, além de frequentemente propagarem informações falsas ou equivocadas”, afirma uma das passagens.
Já como atitudes desejáveis, são listadas: ser proativo, demonstrar interesse em encontrar soluções, ter resiliência, desenvolver trabalho em equipe, prezar pelo bom relacionamento interpessoal, praticar o respeito e ter comprometimento.
“A boa convivência tem limites, exigindo cautela com as brincadeiras”, ressalta outro trecho. “Cada pessoa cria suas próprias diretrizes para ter ou não contato físico. E devemos respeitar, para que não haja mal-entendidos.”
O manual cita o “comprometimento da imagem da Alesp” como um dos danos provocados pelo assédio moral, ao lado de consequências para a vítima, com reflexos psicológicos, físicos, sociais e profissionais. Diz, contudo, que cobranças do dia a dia de trabalho não podem ser consideradas assédio.
A cartilha será lançada nesta quinta em uma solenidade com a presença do presidente da Assembleia, de outros deputados e da procuradora-geral do Estado, Inês Coimbra. O evento, aberto ao público, terá um debate sobre os principais temas do manual e será transmitido pela internet.
JOELMIR TAVARES / Folhapress