(FOLHAPRESS) – Por vezes, são os filmes mais problemáticos que revelam a força de uma filmografia. Fosse feito 30 anos atrás, “Alma Viva”, de Cristèle Alves Meira, pareceria talvez desconjuntado demais, seus problemas saltariam aos olhos, a indecisão entre humor e terror provocaria o caos narrativo.
Hoje, enquanto o cinema português surfa numa duradoura onda de prestígio e criatividade poucas vezes vista em sua história, este filme surge como um novo exemplo da força desse cinema neste século, mesmo que seus excessos o coloquem sob constante risco de naufrágio.
Podemos esquecer o anúncio, sempre explorado pelo marketing, de que o longa foi o escolhido para representar Portugal na disputa por uma indicação ao Oscar de melhor filme internacional.
Essas distinções nunca valeram grande coisa, tendo visto a enormidade de filmes medíocres que costumam ser selecionados pelos mais diversos países com as mais suspeitas justificativas.
Pois apesar dessa escolha, “Alma Viva” tem suas qualidades. Remete tanto a um histórico da produção portuguesa -e ao excelente “O Crime de Aldeia Velha”, de Manuel Guimarães- quanto às buscas do cinema contemporâneo de saída dos grandes centros urbanos.
Nesta produção franco-belga-portuguesa, acompanhamos Salomé, pequena garota interpretada com muita graça por Lua Michel, que passa pelo trauma da morte da avó e pelo transtorno que esse triste acontecimento causa em sua família cheia de coisas mal resolvidas.
Ela passa as férias de verão numa aldeia montanhosa em Trás-os-Montes. Em Portugal, esse dado geográfico abre espaço tanto para a comédia, geralmente baseada na vida peculiar em pequenas comunidades, quanto para um mundo de horror, cheio de sombras e senhoras misteriosas.
A diretora sabe explorar essas possibilidades e desenvolve, com roteiro escrito por ela própria e por Laurent Lunetta, uma trama sempre fácil de ser seguida, com personagens curiosos, quando não instigantes, e situações bem características da vida num pacato vilarejo.
Salomé fala pouco, nunca é vista chorando, no que remete ao protagonista de “O Estrangeiro”, romance antológico de Albert Camus, que motivava falatório dos outros pela mesma ausência de lágrimas no velório de sua mãe.
Se o anti-herói da Camus não chorava nem quando estava sozinho, a pequena Salomé se guarda na frente dos outros, mas se desmancha em segredo, longe dos olhares julgadores.
As brigas familiares, motivadas por pequenas bobagens, e as brigas entre os vizinhos lembram as de uma comédia popular italiana, ou as dos velhos filmes populares do cinema português da época de Salazar.
Mas Salomé tem mesmo algo de estranho. Em seus ataques de sonambulismo, é capaz de entrar em um celeiro e matar todas as galinhas. Ou de empurrar uma das vizinhas do alto de uma escada.
Começam a espalhar, na aldeia, que a menina está possuída pelo demônio, ou pelo espírito de uma bruxa, já que antes de sua chegada todos viviam aparentemente em harmonia.
O filme passeia por diversos limites: entre o estranho e o abjeto, o lirismo e a crueldade, o barulho e o silêncio, o cômico e o assustador, quase sem meios-termos.
“Alma Viva” não precisa dividir o mundo entre mulheres justas e homens nocivos para se revelar um filme de mulheres. A maldade está igualmente distribuída entre vários personagens, homens ou mulheres que costumam deixar que pensamentos ruins tomem a liderança. Mas são as mulheres que movem a trama, mesmo quando morrem, como é o caso da avó.
Nos momentos de briga, fica clara a crueldade que irrompe nas pessoas, que depois caem em si e demonstram um sentimento de arrependimento e carinho.
Mostrar o ser humano em sua complexidade é o forte deste filme ao mesmo tempo singelo e perturbador, em que os conflitos entre as pessoas são observados por uma criança.
ALMA VIVA
Avaliação Bom
Quando Em cartaz nos cinemas
Classificação 14 anos
Elenco Lua Michel, Ana Padrão, Jacqueline Corado
Produção Portugal, 2019
Direção Cristèle Alves Meira
SÉRGIO ALPENDRE / Folhapress