Alta no consumo de drogas em Portugal põe política de descriminalização na mira

LISBOA, PORTUGAL (FOLHAPRESS) – Apontada com frequência como exemplo de sucesso internacional, a ampla política de descriminalização das drogas em Portugal, implementada em 2001, é agora alvo de críticas de setores do país.

Uma das principais vozes desse movimento é Rui Moreira, presidente da Câmara Municipal do Porto, cargo equivalente ao de prefeito. Nos últimos anos, a segunda maior cidade portuguesa tem enfrentado situações complexas, como a concentração de usuários e o alto consumo de drogas em algumas regiões.

Ainda que haja equipes de apoio e acolhimento e, em muitos casos, policiamento reforçado, problemas de segurança pública como furtos e depredações foram ligados às aglomerações dos dependentes químicos.

“Hoje em Portugal é proibido fumar do lado de fora de uma escola ou de um hospital. É proibida a propaganda de sorvetes e de guloseimas açucaradas. E, no entanto, é permitido que [as pessoas] estejam lá, injetando drogas”, disse Moreira, em entrevista ao jornal americano The Washington Post sobre o tema.

Em janeiro, o líder municipal anunciou uma proposta para voltar a criminalizar o uso de drogas no espaço público. Depois, Moreira -eleito como independente, mas ligado à centro-direita- disse não querer criminalizar o consumo em geral, mas endurecer as regras nas ruas, sobretudo próximo a escolas.

Associações de moradores, do Porto e de outras cidades, com frequência se queixam de uma certa fadiga da polícia para lidar com os usuários, e o governo do Partido Socialista, que tem maioria absoluta no Parlamento luso, recusou a ideia de alterar o espírito da lei de descriminalização. Em carta aberta dirigida a Moreira, cerca de 200 signatários, incluindo profissionais de saúde, pesquisadores e associações, declaram-se contrários à proposta da volta da criminalização, ainda que parcialmente, do uso de drogas.

Apesar do apoio majoritário à descriminalização, há uma percepção generalizada de que é preciso recalibrar essas políticas públicas, sobretudo em um momento de alta global do consumo. Portugal adotou a política de descriminalização das drogas de todos os tipos, incluindo cocaína, maconha e heroína, em 2001, durante o governo do então primeiro-ministro António Guterres, atual secretário-geral da ONU. Naquela época, a Europa vivia uma epidemia do uso de heroína.

Seguindo o conselho de um grupo de especialistas, após amplo debate com a sociedade civil, optou-se por transferir a questão das drogas, então tratadas na esfera criminal, para o domínio da saúde pública.

A legislação aprovada à época não liberou o consumo de entorpecentes, mas sua gravidade legal foi rebaixada para contraordenação -similar à contravenção no Brasil-, que prevê sanções bem mais leves.

A descriminalização de quantidades de drogas para uso pessoal -até dez doses de uma mesma substância- foi acompanhada de programas para dependentes, que passaram a contar com extensa rede de auxílio. Além dessas iniciativas, foi implementada ainda uma estrutura de redução de danos para o consumo. Para diminuir a transmissão de doenças, como hepatite ou Aids, por exemplo, as autoridades passaram também a distribuir seringas e outros itens usados por usuários.

Ainda que críticos à legislação tenham antevisto um cenário de explosão no consumo, essas previsões jamais se concretizaram. Pelo contrário, o país teve uma redução expressiva no número de usuários de heroína e cocaína, bem como na cifra de contágios relacionados à utilização de entorpecentes.

Em 2012, porém, em meio à crise financeira global, Portugal alterou o funcionamento do sistema de apoio e decidiu descentralizar as medidas de ação. Com o financiamento público em queda -o investimento caiu de EUR 76 milhões para EUR 16 milhões-, muitas das atividades foram terceirizadas para ONGs, que hoje se queixam da falta de recursos e de uma lacuna na oferta terapêutica para quem quer se livrar do vício. As vagas em clínicas e instituições de reabilitação estão bastante aquém da demanda.

Portugal vê, assim, a piora de vários indicadores, como o número de recaídas na toxicodependência e nas mortes por overdose, que subiram 45% em 2021 em relação ao ano anterior, o pior resultado desde 2009.

Em meio às queixas, o governo anunciou que voltará a concentrar os esforços num só órgão, e o Instituto dos Comportamentos Aditivos e Dependências (ICAD) deve entrar em funcionamento em 2024, sob o comando de João Goulão, um dos principais nomes por trás da política de descriminalização.

Em entrevista ao semanário Expresso, em dezembro, Goulão criticou o estado atual da atenção à questão das drogas no país. “O que temos hoje já não é exemplo para ninguém.”

Os desafios na área se acumulam. Após um declínio durante os confinamentos da pandemia de Covid, Portugal, assim como vários países, tem registrado aumento no uso de entorpecentes.

Dados do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, que analisa as águas do esgoto de mais de uma centena de cidades europeias para traçar uma radiografia do consumo das substâncias, indicam que Lisboa aparece na décima colocação no ranking de consumo de cocaína em 2022. A capital portuguesa está ainda no segundo lugar para o uso de cetamina.

Atualmente, os deputados discutem alterações à legislação para incluir novos entorpecentes não previstos no texto anterior. Dois projetos pedem a equiparação das NSP (novas substâncias psicoativas), em alta no país, sobretudo nas regiões autônomas da Madeira e dos Açores, às drogas clássicas.

GIULIANA MIRANDA / Folhapress

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