MATOSINHOS, PORTUGAL (FOLHAPRESS) – Os raios de luz que atravessam as grossas paredes de concreto branco mostram que o jogo entre claro e escuro ali tem o mesmo peso físico, o mesmo papel estruturante, que as partes de pedra da construção toda aberta ao entorno.
É feito também de sol e vento isso que o arquiteto chama de templo. Não é um exagero. Álvaro Siza, um dos maiores e mais respeitados arquitetos no mundo hoje, acaba de criar um espaço tão seco quanto sagrado, mínimo nos mais mínimos detalhes, um tanto bruto, mas acolhedor, para quem busca abrigo nessa espécie de abraço pétreo erguido ao lado do mosteiro de Leça do Balio, nos arredores do Porto.
O lugar é um dos pontos de parada na rota portuguesa até Santiago de Compostela, na Espanha, o famoso caminho de peregrinos.
Na entrada de seu mais novo projeto, Siza instalou uma escultura que simboliza um desses viajantes, uma placa fina de concreto, branco como todo o volume construído mais adiante, arquitetando um encontro entre o público e sua obra.
Sua vasta galeria de construções no norte de Portugal, aliás, não é nada estranha a quem vive ali ou costuma visitar o lugar.
Siza, vencedor do Pritzker, láurea máxima da arquitetura no mundo todo, construiu alguns dos cartões postais de seu país -são dele o Museu de Serralves, as piscinas de Marés de Leça da Palmeira, a Casa de Chá Boa Nova e mesmo o metrô de superfície que corta todo o Porto.
O marco definidor de sua obra, exacerbado agora no templo ao lado do mosteiro, é uma austeridade serena e límpida, que atravessa uma musculatura robusta de ângulos retos.
São trabalhos sempre marcados pela relação generosa com a luz e o espaço ao redor, como atestam os janelões de Serralves que enquadram o jardim exuberante do lado de fora e enchem as galerias de uma atmosfera filtrada pelo verde.
Na casa de chá, os mesmos largos panos de vidro emolduram a vista do Atlântico. A construção, aliás, quase desaparece na costa, como uma estrutura que se curva em reverência à natureza circundante. À altura da estrada, para quem chega, o restaurante é quase invisível, brotando da costa já num declive ao encontro das ondas.
O mesmo acontece nas piscinas que construiu à beira-mar, em que só parte do desenho é traço do arquiteto, o resto são rochas da paisagem que fecham os limites da estrutura, um encontro suave de volumetrias que em tudo contrastam, a fricção tornada elemento de harmonia.
Seu novo projeto também cria uma relação singular com o entorno. Suas torres e volumes ecoam os contornos do mosteiro ao lado, uma construção em estilo românico do século 14 que já abrigou ordens religiosas e depois, por centenas de anos, foi uma residência.
Siza restaurou os interiores do mosteiro com atenção às muitas camadas de história que se acumulam em seus muros de pedra, removendo forros falsos e outros elementos acrescentados ao longo dos anos para revelar a estrutura original dos telhados. Nesse sentido, é a resiliência da pedra bruta que resiste aos assaltos do tempo como atestado de fé.
“Esse passado não é simples, não é linear”, diz Álvaro Siza. “A maneira como eu encarei esse projeto foi realmente a recuperação de um edifício histórico, erudito, com toda a sua definição, mas há um sabor especial no fato de ter sido usado e amado enquanto uma habitação. Não tive nenhuma veleidade, nem poderia ter, de repor a verdade histórica, mas sim trabalhar entre esse encanto que tem e mantém a casa, e o que existe de períodos anteriores e que está intocado.”
Essa estratégia, aliás, não é uma novidade na obra do arquiteto. Siza é um autor de assinatura própria que se manifesta com desenvoltura, mas sabe trabalhar em coro, reconhecendo vozes ancestrais que se articulam juntas na cartilagem das construções.
Esse também não é o primeiro mosteiro que ele restaura em Portugal, buscando na fissura de pedras milenares uma narrativa plástica que faça a ponte com tempos atuais. Se na superfície, lisa e inabalável, sua obra parece uma releitura sóbria, soprada pelos ventos do Atlântico, da dureza angular da Bauhaus, o arquiteto também se rende aos labirintos medievais como arcabouço estético.
Nem todos são ângulos retos, nem tudo é escrito em pedra, ou ao menos enquanto cartilha carrancuda. Siza molda delírios com a delicadeza rude e cortante do material mais bruto, o paradoxo do concreto erguido como uma folha de papel atravessada por toda a luz.
O arquiteto dá a receita desse embate. “Procurei uma presença transformadora no perfil do terreno, capaz de relacionar elementos de diferentes escala e expressão”, afirma Siza, em entrevista. “Igreja românica, novo equipamento, diferentes materiais -o granito e o concreto branco.”
Sua mais nova construção, nesse sentido, é como uma versão depurada da aspereza gótica do mosteiro, uma espécie de eco estilizado da estrutura original, o desenho deixado só desenho, já que o chão de pedras do exterior é o mesmo do lado de dentro, um cômodo vazio rasgado no alto, aberto ao céu, em que a luz ao longo das horas do dia vai desenhando riscos e traços na tela branca do concreto.
Esse brutalismo feito de luz também se entende como extensão da presença do novo mobiliário que ocupa as galerias do mosteiro, destinadas a receber mostras de arte, e sua entrada.
Se no Museu de Serralves o arquiteto construiu austeras galerias, o tradicional cubo branco, encadeadas como que num labirinto, em Leça do Balio os espaços foram mantidos cavernosos, em pedra crua, com acentos de bancos, balcões e mesas minimalistas, secos.
É a nova sede da Fundação Livraria Lello, o famoso marco literário do centro do Porto, que agora desdobra na antiga e na nova estrutura de Siza um programa de exposições. Ou mais. O arquiteto busca, com a nova obra, um desenho que parece um aceno aos mestres modernos que tanto admira, de Le Corbusier a Carlo Scarpa, construir o espaço de um encontro com a espiritualidade, em todos os sentidos. “Será este o local de encontro de visitantes e peregrinos, de utilização eventual como capela.
SILAS MARTÍ / Folhapress