BELO VALE, MG (FOLHAPRESS) – “Parece um conto da mitologia grega: uma pequena cidade rural escondida nas colinas, habitada por belas mulheres em busca de amor”. Assim começava um artigo do jornal inglês The Telegraph publicado em 2014. “Procura-se: homens jovens para viver em cidade só de mulheres no Brasil”, dizia outro texto, publicado pelo India Today na mesma época.
A “cidade” era Noiva do Cordeiro, uma comunidade rural de Belo Vale, a 125 km de Belo Horizonte. Mas havia um problema: nada daquilo era verdade.
Quase dez anos depois de ser alvo de uma fake news replicada em diferentes países, a comunidade em Minas Gerais liderada por mulheres ainda administra com algum humor os impactos da notícia falsa -o que inclui ligações, visitas de estrangeiros “iludidos” e mensagens com pedidos de casamento nas redes sociais.
Ao mesmo tempo, passou a transformar o burburinho em uma forma de divulgar sua história e modo de vida -marcada por refeições, trabalho e decisões compartilhadas, ausência de religião e o que moradores definem como reforço à igualdade, após anos de repressão às mulheres.
De acordo com relatos da comunidade, tudo começou por volta de 1890, quando Maria Senhorinha de Lima, que dá nome à rua principal, decidiu fugir de um casamento arranjado e se juntar a Francisco Fernandes, que morava na região.
Como punição, dizem seus netos, a igreja teria excomungado Maria e seus descendentes. A decisão repercutiu entre vizinhos católicos, que passaram a xingá-la, e o casal foi viver isolado.
Uma situação que se acentuou quando Anísio Pereira, um pastor evangélico que buscava fundar uma igreja própria, Noiva do Cordeiro, casou-se com uma das netas de Maria, Delina. “A igreja era muito rígida”, lembra Arodi Pereira, 54, o “Canela”, um dos 15 filhos do pastor com Delina.
Segundo ele, mulheres tinham que ser submissas e usar roupas longas; músicas eram proibidas e jejum era obrigatório em ao menos dois dias da semana. “E era muita pobreza. Dormia com fome, sem jantar.”
Canela conta que fiéis começaram a questionar as regras até que, na década de 1990, com o pai e pastor já idoso, decidiram fechar a igreja e comunicar a ele a decisão. “Foi um choque”, conta. A partir daí, houve consenso: cada um manteria a fé como quisesse, mas sem religião.
A decisão repercutiu entre vizinhos mais uma vez. “Quando as mulheres tiraram aquela vestimenta, muitos falaram: ah, virou puta”, diz Flávia Vieira, 39, que foi morar em Noiva com a mãe, prima de Delina.
E havia ainda a pobreza. Foi aí que, após a morte do marido, Delina assumiu papel de liderança na comunidade e propôs que o grupo passasse a trabalhar em conjunto. Uma das filhas conseguiu financiamento de novos lotes de terra.
“Antes trabalhava cada um por si. Minha irmã propôs ser junto e todo mundo aceitou. A gente não tem dinheiro, mas tem muita fartura”, diz Valdete Fernandes, 57, que ajuda a preparar as refeições na comunidade.
Atualmente, a estimativa é que haja cerca de 350 pessoas no vilarejo. O grupo diz que o número de homens e mulheres é hoje aproximado, mas que elas sobressaem. Dados de agentes de saúde apontam ao menos 139 mulheres e 98 homens -o total não inclui crianças e adolescentes.
Ainda segundo os moradores, desde as mudanças no modelo de trabalho, são as mulheres que organizam a maioria das atividades, que incluem plantação de milho, café, hortaliças e mexerica.
Também são elas a cuidar da criação de bezerros e galinhas, uma fábrica de confecções, escola e eventos de lazer, como “Sábado da Viola” e “Sextaneja” – esta, aberta a comunidades vizinhas.
A rotina começa às 6h, quando um primeiro grupo de moradores -que se dividem em duas casas coletivas e outras 80 espalhadas no povoado- se encontra para o café da manhã. Em seguida, partem para o trabalho, combinado por Whatsapp.
Márcia Fernandes, filha de Delina, por exemplo, trabalha na lavoura, recebe jornalistas e tem uma dupla sertaneja com Maciel.
Outro morador, Pedro vai à roça pela manhã, é professor voluntário de ciências na escola à tarde e, nas horas vagas, é bailarino de Márcia & Maciel e de Keila Gaga, moradora e cover de Lady Gaga. Keila, por sua vez, é cantora, agricultora, costureira e diretora artística.
‘TERRA DE SOLTEIRAS’?
Mas como Noiva se transformou em “terra de solteiras” há dez anos?
Segundo Márcia, a suspeita é que algumas reportagens tenham tido trechos retirados de contexto.
Em uma delas, publicada em 2009, uma das jovens da vila diz que estava difícil encontrar namorado na época, já que muitos homens eram “meio primos” e outros estavam comprometidos.
A percepção ganhou outra proporção em jornais estrangeiros, que citavam “mulheres desesperadas” e campanha por maridos.
Desde então, o grupo calcula ter recebido visitas de pessoas de 25 países, incluindo Japão, Israel e Egito. “Vem gente de todo jeito, quem tem entendimento até o iludido doido para casar. Mas aí vem com uma ideia e sai com outra”, diz ela.
NATÁLIA CANCIAN / Folhapress