SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Entendendo um luto mal resolvido, a escritora belga Amélie Nothomb devolveu à vida as cordas vocais do pai. No romance “Primeiro Sangue”, Patrick Nothomb é quem conta em primeira pessoa as aventuras de sua infância e seu início de carreira como funcionário do corpo diplomático da Bélgica.
Morto em confinamento, no início da pandemia de Covid-19, ele não teve despedida da família, como ocorreu com tanta gente ao redor do mundo. O luto de Nothomb foi escrever.
O que lemos nas primeiras páginas, é, segundo ela, o primeiro encontro dele com a morte. “Um encontro que deu errado, aos 28 anos de idade”, ironizou ela em um bate-papo organizado pela Librairie Mollat.
Esse primeiro encontro, que abre o livro e confere à história um ar misterioso, aconteceu em 1964, no Congo, poucos anos após o território conquistar a independência do colonialismo belga.
Naquele momento, o quase xará do diplomata, Patrice Lumumba, já havia sido executado no auge de sua atuação política, aos 35 anos. Não há detalhes, porém, sobre este ou outros acontecimentos prévios em “Primeiro Sangue”.
O pedaço da história no qual somos inseridos é a tomada de mais de 1.500 reféns brancos em um hotel de Stanleyville. Por quatro meses, os rebeldes autodenominados simbas –leões em suaíli– pressionavam os governos do Ocidente pelo reconhecimento de sua República Popular.
Patrick Nothomb estava lá, foi um dos sobreviventes e escreveu um livro sobre a experiência em 1993, intitulado “Dans Stanleyville” (em Stanleyville, em tradução).
Segundo a própria escritora, é um livro que deu errado do ponto de vista literário, já que esbalda em detalhes técnicos e políticos e se nega a explorar aspectos humanos da experiência em terras congolesas.
A geopolítica complexa que abre e fecha o livro, porém, não é o foco da obra. Nothomb está em franco reencontro com o pai. Com a versão criança dele, principalmente –uma busca correlata à infância da própria autora.
Desde que nasceu, a última de três filhos, Nothomb era comparada ao pai pela semelhança física. Às vezes chegava a ser apresentada pelo nome dele em encontros sociais, algo que tende a criar muita confusão na cabeça de uma criança que ainda precisa se reconhecer como indivíduo.
O trabalho dela nessas páginas é muito mais do que um romance histórico. Sua narrativa clara e cheia de referências, que passam por autores como Dostoiévski, Rimbaud e Baudelaire, é cativante e leva os olhos a percorrerem rapidamente as poucas páginas.
As tensões no Congo são praticamente uma moldura. E embora ela faça falta, em alguma medida, o intuito de Nothomb é desvendar os medos mais singelos do pai, entender sua sensibilidade fora do comum, pescar detalhes da veia literária da família e apresentar o universo burguês no qual está inserida, que se equilibra entre a negação da decadência e o prestígio que atravessa gerações.
Um detalhe importante: na Bélgica, os Nothomb são conhecidos pela afiliação à direita católica –postura que a autora ironiza dentro e fora do livro.
Amélie Nothomb, nome artístico de Fabienne Claire Nothomb, tem mais de 30 livros publicados em francês, a maior parte deles com capas que levam seu nome e rosto, em destaque. No Brasil, apenas 10% das obras estão traduzidas e as capas são mais discretas.
A escolha da editora Paris de Histórias foi mais elegante e ofereceu a “Primeiro Sangue” uma capa simples, de cores fortes e páginas pouco pretensiosas –o que acaba por aumentar a surpresa de quem mergulha no bom texto da autora.
Primeiro Sangue
Preço: R$ 67,90 (152 págs.)
Autoria: Amélie Nothomb
Editora: Paris de Histórias
Tradução: Daniel Moreira
Avaliação: *Muito bom*
VANESSA OLIVEIRA / Folhapress