Anna Muylaert dirige Seu Jorge abusador em filme ‘A Melhor Mãe do Mundo’

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Seu Jorge está deitado na cama, vestindo um uniforme de segurança, com as mãos atrás da cabeça servindo de travesseiro. Ele aguarda com paciência no quarto, que é bem pequeno e apertado –típico das casas que compõem o bairro Vila Conde do Pinhal, na zona sul de São Paulo. A cama é de casal, rodeada por duas cômodas baixinhas, e à sua direita fica um janelão com persianas de madeira.

A cena pacífica sugere isolamento, mas o ator está longe da solidão. Ele espera a equipe do filme “A Melhor Mãe do Mundo”, que na sala vizinha, há apenas uma parede de distância, se prepara para uma sequência difícil do roteiro. O espaço está apinhado de pessoas da produção e abarrotado de objetos de cena no começo da noite. A agitação é tanta que a imagem de Seu Jorge no monitor, calmo e sereno, passa despercebida.

O longa tem direção de Anna Muylaert, que retorna às ficções depois de “Alvorada”, documentário de 2021 sobre a ex-presidente Dilma Rousseff. “A Melhor Mãe do Mundo” também é o novo capítulo na longa relação da diretora com a personagem da mãe, que consagrou seu cinema –desde a estreia em longas com “Durval Discos”, de 2002, até o sucesso de “Que Horas Ela Volta?” em 2015. Mas a protagonista da vez, vivida por Shirley Cruz, passa por um drama completamente diferente das outras de sua carreira.

A equipe trabalha com afinco naquele quarto porque a sequência é delicada. A história acompanha Gal, uma catadora de lixo que foge do marido, Leandro, com os filhos. Ela leva as crianças na sua carroça até a casa da prima, saindo do centro para chegar à periferia da cidade, porque o cônjuge –vivido por Seu Jorge– a agride. Na cena do dia, o casal se reencontra pela primeira vez após a fuga, e ela sofre uma recaída nas mãos dele.

Assim, faz algum sentido que o ator seja o único mais relaxado naquele momento –seu personagem precisa da serenidade.

“O Leandro é um dominador mesmo, e ele já está nessa relação há um tempo. Ele conhece os medos da Gal e sabe se impor sobre ela”, diz Seu Jorge. “A doença dele está na hora do sexo, em ver aquela mulher aos pés dele, baixada a ele, fazendo o que ele quer, escrava do desejo dele.”

O artista explica que o marido é uma pessoa como qualquer outra, que marcha todo dia na vida e em seus problemas. Mas Leandro, diz ele, tem uma patologia que o impele a um ciclo de dominação. “É a coisa de ser homem, disfarçada de um cara que trabalha como segurança quando, na verdade, gostaria de ser da polícia.”

“Um cara como o Leandro só se relaciona com as mulheres a partir do desejo. Se ele não deseja a mulher, ele nem a nota, porque não a considera um ser humano. Ele só vive com a Gal porque ela é do caralho com ele e cuida dele. Mas fora de casa, se ele vê a bunda de uma mulher que acha gostosa, ele vai se relacionar pelo desejo. Esse tipo de cara faz tudo com o pau dele.”

No set, tudo isso transparece já na primeira filmagem do reencontro de Gal com Leandro. A câmera enquadra os dois artistas na cama na maior distância possível dentro do quarto minúsculo e, assim, mostra o marido submetendo a esposa a seu controle. Tudo com muita paciência, começando no buquê de rosas oferecido por ele e rejeitado por ela.

Daquela posição, a câmera nunca vê o rosto de Gal, que reclama que Leandro nem pede desculpa pelo que fez. Ele diz não saber se desculpar porque ninguém o ensinou, e em seguida afirma amar a mulher e acreditar que os dois podem fazer aquilo dar certo.

Em seguida, ele aumenta o tom de voz para mandar Gal olhar no seu olho. “Sabe por que você diz que não me ama? Porque você sabe que eu sou o seu homem”, diz Leandro. “Eu posso ter um monte de defeito, mas todo mundo tem defeito. Você acha que vai encontrar um homem sem defeito?”

Entre uma tomada e outra, Anna Muylaert não para um momento. Depois de assistir a cena ao vivo, distante do monitor na sala, ela orienta os atores e pensa nos mínimos detalhes os enquadramentos da câmera.

“Você não olha para ele até ele pedir para olhar”, a diretora diz para Shirley Cruz em um dos intervalos. “Quanto mais ele batalha pelo seu olhar, melhor para ele.”

A inquietação faz parte da agenda corrida. Entre o início das filmagens, em 4 de novembro, e o fim do trabalho, em 13 de dezembro, a diretora só teve 29 dias para gravar o filme. O calendário do projeto também interrompeu outro, a pós-produção de “O Clube das Mulheres de Negócios” –filme que ela pretende estrear no próximo ano.

Muylaert afirma que não gosta, mas o ritmo de dois projetos ao mesmo tempo virou um hábito na carreira. Basta lembrar dos últimos dois filmes, o hit “Que Horas Ela Volta?” e o pequeno “Mãe Só Há Uma”, que saíram com um ano de diferença entre si após também serem tocados em paralelo pela cineasta.

No caso de “A Melhor Mãe do Mundo”, ajudou que a produção de “O Clube das Mulheres de Negócio” atrasou com a pandemia. O roteiro filmado agora foi escrito já há algum tempo e começou como parte de uma série de Muylaert sobre diferentes mães do país. A inspiração veio da imagem das catadoras, que vez ou outra levam os filhos nas carroças enquanto trabalham recolhendo o lixo.

Para uma diretora que construiu a carreira em torno da figura maternal, o filme é uma proposta irrecusável. “Eu acho a mãe uma personagem muito forte porque ela já traz outra embutida”, diz ela.

“No sentido da natureza, a força da mãe protege a espécie, mas no sentido sociopolítico ela é inexistente, sequer está no orçamento. Existe aí uma contradição entre o peso que ela carrega e o quanto de apoio recebe, e por isso acho que ela precisa existir mais.”

No caso de “A Melhor Mãe do Mundo”, a característica que define Gal –nas palavras de Muylaert– é ser a mãe que protege a filha da maldição do abuso. “O foco do filme é a força dela para sair dessa relação. Hoje ela teve essa recaída, mas ela é uma pessoa que vai embora de novo para proteger a filha dessa relação. O que me segura no filme é a força dela para se libertar deste ciclo.”

Essa força surge gradualmente nas cenas filmadas na casa da prima. Depois de um plano geral, a equipe posiciona a câmera para pegar detalhes dos dois artistas. Mas os quatro ângulos planejados para antes da pausa do jantar viram cinco. Muylaert decide de última hora estender a cena e mostrar os personagens transando, o grande triunfo da dominação exercida pelo olhar penetrante de Leandro.

Mas a cada nova tomada, o trabalho que chama a atenção é o de Shirley Cruz. Diante da lente da câmera, distante poucos centímetros de seu rosto, a atriz mostra o quanto Gal luta para não sucumbir ao marido. O olhar fixo ao vazio só não é mais impressionante que o movimento da cabeça, que vai para frente e para trás como o serpenteio de uma cobra.

“É um instinto de sobrevivência, esse homem fere muito esta mulher”, explica Cruz depois. A atriz diz ainda que Gal não é uma coitada, mas uma pessoa muito forte dentro de uma relação de abuso sério –o filme inclusive começa na delegacia da mulher.

“Ela recebe golpes demais, a jornada de Gal é uma muito ferida, de quase agonia. Em alguns momentos, parece que ela está reabrindo um trauma mesmo.”

O papel exige muito da artista. Além do psicológico, Cruz teve que preparar o físico para puxar uma carroça pelas ruas de São Paulo, levando duas crianças e 400 quilos com os braços e duas rodas. O tempo instável da cidade só ampliou o desafio: a equipe gravou cenas da travessia debaixo de chuva e da alta de calor.

Ela conta que dispensou dublês para mergulhar na realidade das catadoras, contratando uma quiroprata para desenvolver o lado físico.

“A Gal quase nunca chora porque ela é muito forte, mas eu não aguento. Quando eu acabo de puxar 200 quilos, meu corpo está tremendo, e aí eu vejo as crianças na carroça. Não tem como você se preparar para isso.”

A travessia mostrada no filme acompanha a jornada da diretora paulista pelas classes sociais de sua cidade. Se Anna Muylaert, em “Durval Discos”, começou a carreira filmando o drama da mãe da classe média, ela agora trabalha uma de realidade mais difícil. Como Gal, a cineasta saiu da região central para alcançar a periferia de São Paulo.

A própria Muylaert sentiu esse deslocamento durante a criação de “A Melhor Mãe do Mundo”. Ela diz que depois de conhecer as carroceiras da cooperativa de catadores da Baixada do Glicério, uma sessão da peça “Mãe Coragem” –montada por Daniela Thomas em 2019– fez a diretora perceber aquelas mulheres como um arquétipo.

“Aí eu entendi como tive coragem de fazer esse deslocamento socioeconômico. O que me atraía ao filme era o arquétipo dessa mãe puxando a carroça porque, simbolicamente, toda mãe solteira está fazendo o mesmo. A diferença é que as mulheres do Glicério tem uma força fascinante. A gente acha que vai encontrar pessoas que apenas catam o lixo, mas elas são de um poder e humanidade imensos.”

Para Shirley Cruz, que também trabalhou em “O Clube das Mulheres de Negócios”, a diretora entende o quanto ter um filho muda a pessoa. “A Anna [Muylaert] faz um cinema que apelidei de cinema de fé. Ela acredita no cinema como uma ferramenta de transformação, e por isso ela é uma grande aliada das mulheres.”

PEDRO STRAZZA / Folhapress

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