FOLHAPRESS – A primeira reação da plateia, ao sair da sessão prévia de “Anora”, promovida pela Mostra, foi de estupefação. O que aconteceu, o que significa esse filme ganhar o Festival de Cannes? O colega Marcelo Miranda de cara diagnosticou o gênero do filme: “É uma comédia screwball”. Isso situa de imediato o espectador desconcertado. Trata-se de uma “comédia maluca”, como ficou conhecido no Brasil esse tipo de comédias pautadas por comportamentos excêntricos.
As explicações sobre a premiação não chegam a ser convincentes. O ano foi fraco em Cannes, sobrou para “Anora”. Ou ainda, Greta Gerwig, presidente do júri, é estadunidense e da mesma turma (geração) de Sean Baker, o diretor. Nepotismo e interesses diversos são moeda corrente nas premiações de festivais. Passemos.
O filme trata da trajetória de Anora, ou Ani, uma garota de programa que, numa boate, convida os frequentadores para danças eróticas e, como consequência, vai para os quartos reservados com eles.
Como é neta de imigrantes russos, Ani se vira bem na língua de Vanya (Mark Edelstein), cliente jovem, mimado, capaz de transar sem abandonar seu videogame, bêbado, inútil e, sobretudo, arquimilionário. Ou seja, o filho irresponsável de um oligarca russo.
O fato é que Vanya se toma de amores por Ani, a pede em casamento, compra-lhe uma aliança caríssima e toca para Las Vegas, onde se casam. Até aí o filme carrega esse lado conto de fadas, com Ani toda feliz. O lado “screwball” se manifesta desde que os pais de Vanya ficam sabendo das extravagâncias do rebento e desembarca nos EUA uma tropa de choque armena, comandada pelo infeliz, porém violento Toros, com a missão de dar um fim à alegria da dupla e desfazer o casamento irresponsável.
É o momento em que Ani mostra quem é “lutadora como tudo” e se dispõe a defender o casamento, ela que se julga apaixonada pelo rapaz. Vanya também mostra quem é “fraco”, arruinado pelos mimos e pela riqueza sem fim. A comédia se estabelece junto com a confusão e, diga-se, Sean Baker a conduz com segurança, o que não é tão fácil. A comédia se reforça com a chegada dos quase monstruosos pais de Vanya.
De tudo resulta um filme agradável e talvez bem menos inconsequente do que pareça. Pois ali estão considerações nada inoportunas (ou inoportunas) sobre certa degeneração dos valores, que entronizou o dinheiro como o que existe de mais importante do mundo.
Ter dinheiro e bens em abundância quase infinita (apanágio de trilionários, oligarcas etc.) coloca algumas pessoas no topo da sociedade. Não importa o que possam produzir, nem a fonte da riqueza. O dinheiro legitima a si mesmo.
Na outra ponta estão os pobres. No caso, Ani, cuja função é servir a esses ricos e também aos que pegam as beiradas da riqueza e ao menos sonhar em enriquecer, com fantasias de Cinderela. Enquanto isso não acontece, Ani é considerada indigna de pertencer à família do oligarca. Mas o que os separa, de fato?
Essa é uma questão lançada por “Anora” e que se endereça à maneira como valores tipo integridade ou senso do dever caíram de moda e foram substituídos pelo cinismo argentário, que adquiriu poder enorme sobre o andamento do mundo em décadas recentes.
É preciso dizer, por fim, que Sean Baker conseguiu fazer reviver um gênero que conheceu seus grandes dias nos anos 1930, sobreviveu esporadicamente graças a certos filmes, como os de Billy Wilder e ressurgiu com Peter Bogdanovich nos anos 1970, mas numa chave nostálgica. Esse exercício à volta da comédia centrada em personagens excêntricos pode não ser o que se espera de uma Palma de Ouro, mas se deixa ver agradavelmente e está longe de ser desprezível.
ANORA
– Avaliação Muito bom
– Classificação 16 anos
– Elenco Mikey Madison, Yuriy Borisov, Karren Karagulian
– Produção EUA, 2024
– Direção Sean Baker
INÁCIO ARAUJO / Folhapress