Antologia poética de Salgado Maranhão traz à superfície vivências dos seus 70 anos

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Os títulos de escritor, poeta e compositor parecem pouco precisos para descrever o que faz Salgado Maranhão, de 70 anos.

Conceição Evaristo chama de escrevivência a escrita que nasce do cotidiano, das memórias e da experiência de vida de homens e mulheres negros. O nome parece adequado ao trabalho de Maranhão, que traz em seus versos elementos que remetem à sua história.

“Quem olha na minha cara/ já sabe de onde eu vim/ pela moldura do rosto/ e a pele de amendoim/ só não conhece os verões/ que trago dentro de mim”, diz o eu lírico do maranhense José Salgado Santos Costa, como foi registrado, nos primeiros versos de “Aboio”. O poema leva o nome de um canto típico da região onde nasceu o escritor, geralmente entoado por vaqueiros enquanto conduzem o gado.

Publicado pela primeira vez em 2005 no livro “Solo de Gavetas”, o texto foi relançado pela editora Malê na antologia “A Voz que Vem dos Poros” no ano passado, quando o autor completou sete décadas.

A publicação reúne poemas desde sua estreia, com o lançamento de “Ebulição da Escrivatura” em 1978, passando por “Mural de Ventos” e “Ópera de Nãos” –que lhe renderam Jabutis, respectivamente em 1999 e 2016– até “Pedra de Encantaria”, de 2021.

Ao folhear as páginas, o leitor encontra provas palpáveis de quem é o escritor. Sol, pedra, solo, ventos, serpentes, lobos e outras feras marcam a territorialidade de Maranhão, que nasceu e cresceu no campo, no interior do Nordeste.

“A poesia de Salgado foge completamente de abstrações. Ela é situada no nível do corpo, do chão e da experiência mundana, e está intimamente ligada à vivência”, diz Rafael Campos Quevedo, professor de literatura da Universidade Federal do Maranhão e um dos responsáveis pela organização da antologia.

Homem negro, Maranhão traz em seus poemas palavras que refletem a vivência de resistência, alegrias e dores vividas pelos descendentes dos povos trazidos de África no período de colonização.

É aí que aparecem os punhos, a escrita e o beijo que representa o afeto –arma e escudo para povos negros, por meio do qual muitos sobreviveram e pelo qual muitos morrem até hoje. Embora não aborde o racismo de forma explícita, seus versos derramam essas experiências.

A cultura do escritor, tão presente em sua obra por meio da fauna e da flora, também aparece em forma de folclore, com tesouros espirituais que conduzem a caminhos sagrados.

Para o doutor em letras e editor Vagner Amaro, as metáforas com animais na poesia de Maranhão remetem a uma origem cultural quilombola e indígena que originou também o Brasil. “Ele traz um senso de brasilidade que reverbera para o coletivo, o povo negro, nordestino, pobre”, afirma.

Maranhão fala à Folha de S.Paulo sentado em uma rede ao lado de sua cama e rodeado de livros. O Rio de Janeiro é seu lar há muitos anos, desde que saiu do Nordeste em busca do sonho de se tornar escritor em meados dos anos 1980.

Maranhão se alfabetizou tardiamente, na adolescência, e sua diversão foi a literatura. “Tive acesso a uma biblioteca pública e ela foi a minha principal professora. Eu não lia os clássicos da literatura, eu comia. A leitura mudou todo o meu padrão de visão de mundo naquela hora formadora dos conceitos. O Salgado do Maranhão vem desse choque da cultura da popular com a cultura do livro na adolescência”, diz.

A paixão pelos clássicos pavimentou a relação do escritor com os aspectos formais da poesia, como o ritmo, a escolha das palavras e a métrica. “Há um cuidado na obra de Maranhão que a poesia contemporânea foi abandonando de uma forma um pouco estranha, com descuido”, diz Amaro, também responsável pela organização da antologia.

Exímio sonetista, Maranhão costuma construir seus poemas em um único bloco com 14 versos, subvertendo o modelo convencional de dois quartetos e dois tercetos.

Por vezes, essa relação íntima entre o popular e o intelectual gera estranheza. Para Amaro, no entanto, essa é uma visão elitista sobre o que acontece com naturalidade nas mãos de Maranhão.

“A cultura popular é elaboradíssima. Infelizmente, temos ainda uma elite que tende a fazer essa cisão entre o popular e o erudito. A poesia de Salgado Maranhão mostra o quanto os dois conversam de forma muito natural.”

Ao tentar explicar em qual ciclo de palavras se encontra nesse momento, Maranhão dá um exemplo de sua simplicidade.

“Elas entram no meu juízo. Vejo uma coisa e não estou nem pensando em poesia, mas isso me aciona a escrever, a dizer o que estou vendo à minha maneira. Esse é o papel do poeta, ver não só para si, mas para os outros. Nem todas as dores nós sofremos, mas a gente compra a dor dos que sofrem e retornamos para a sociedade com aquela percepção que estava submersa”, diz.

A VOZ QUE VEM DOS POROS

Preço: R$ 68 (252 págs.)

Autoria: Salgado Maranhão

Editora: Malê

PAOLA FERREIRA ROSA / Folhapress

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