DEARBORN, EUA (FOLHAPRESS) – O apoio inabalável do governo Joe Biden a Israel na guerra em Gaza e no Líbano pode custar à candidata Kamala Harris uma boa parcela dos votos de árabe-americanos, um eleitorado que foi solidamente democrata nas últimas duas décadas. .
Em Dearborn, cidade com maior concentração de árabe-americanos nos Estados Unidos, muitas pessoas são abertamente críticas a Kamala. Mesmo as que sempre votaram em democratas dizem que, desta vez, não vão sair de casa ou vão escolher Jill Stein, candidata do Partido Verde.
Duas pesquisas recentes mostram a guinada deste eleitorado. A pesquisa YouGov para a ArabNews mostra o republicano Donald Trump com 45% das intenções de voto, dois pontos à frente de Kamala, com 43%. Em uma pesquisa anterior, do Arab American Institute, Trump aparecia com 42%, e Kamala, com 41%,
Dos cerca de 120 mil habitantes de Dearborn, 55% são de ascendência do Oriente Médio ou do Norte da África. Placas em árabe e restaurantes libaneses enfileiram-se pela cidade.
No estado do Michigan, mais de 300 mil habitantes têm origem árabe. Em uma disputa apertada como a atual, o número é significativo maior do que a margem de vitória de Biden no Michigan em 2020, de 255 mil.
Muitos em Dearborn têm familiares e mantêm suas casas no Líbano. É o caso do engenheiro civil Nazih Chougari, que passa oito meses do ano no Líbano e quatro meses nos Estados Unidos, com seus filhos que moram em Dearborn. Quer dizer, passava. Seu apartamento em Sour, no sul do Líbano, foi abalado por um bombardeio israelense no prédio do lado, que foi ao chão. Ele não sabe em que condições o prédio está. Sua mãe, seu irmão e sua irmã tiveram que fugir de lá e estão vivendo em um apartamento alugado em um bairro cristão de Beirute.
Na tarde de segunda-feira (4), véspera da eleição, Chougari estava à frente da principal mesquita de Dearborn, o Centro Islâmico americano. Ele já eleitor de democratas e republicanos. Desta vez, não planeja votar em ninguém. “Se algum deles dissesse que vai assinar um compromisso de lutar por um cessar-fogo em Gaza e no Líbano, eu votaria na hora”, disse.
A poucos metros da mesquita, há um outdoor com os dizeres “Free weed cannabis outlet” (Erva de graça loja de cânabis). Michigan é um estado que permite a venda e o consumo de maconha. Ao lado, há um outdoor de campanha de Trump mirando o eleitorado árabe “Trump pela paz”.
Um super PAC financiado, em parte, pelo bilionário Elon Musk comprou anúncios nas redes sociais direcionados a eleitores árabes ressaltado o apoio de Kamala Harris a Israel.
A principal ponte do republicano com o eleitorado árabe é Massoud Boulos, sogro de Tiffany Trump, filha de Trump com sua segunda ex-mulher, Marla Maples. Boulos, nascido no Líbano, costurou a reconciliação da comunidade com Trump que, em seu mandato, instituiu o veto a muçulmanos proibiu a entrada nos EUA de cidadãos de sete países de maioria muçulmana.
O investidor palestino-americano Bishara Bahbah era registrado no partido democrata até 6 meses atrás. “Tentei falar com a campanha de Harris, disse que não era possível os Estados Unidos continuarem fornecendo armas e dando proteção diplomática para o genocídio cometido por Israel, mas não deram bola”, disse à Folha.
Bahbah fundou o grupo “Árabes-americanos em apoio a Trump” e já se reuniu com Trump algumas vezes. “Ele me disse que vai lutar pelo cessar-fogo em seu governo e prometeu que iria defender a solução de dois Estados entre Israel e Palestina.”
Segundo relato do Washington Post, Biden teria dito, há cerca de um mês, que suspenderia o fornecimento de armas para Israel caso o governo do premiê Binyamin Netanyahu continuasse impedindo a entrada de ajuda humanitária no norte de Gaza. “Mas Biden não tem a menor credibilidade, Netanyahu faz gato e sapato dele”, disse Bahbah.
Trump, no entanto, tem feito promessas opostas a líderes pró-Israel e defendeu direito de o regime de Netanyahu se defender.
“Harris pode até falar que quer o fim da violência e um cessar-fogo, mas, como vice-presidente, ela não fez nada. Netanyahu não vai levá-la a sério e vai continuar fazendo o que quer, sabendo que os EUA continuarão a fornecer armas.”
Ele afirma que não haveria perigo de uma reedição do veto a muçulmanos. “Hoje, a equipe dele de Oriente Médio é diferente, eles não fariam isso”. Ele também confia que Trump abandonou o objetivo de fazer seu “acordo do século” uma proposta de paz entre Israel e palestinos que foi totalmente rechaçada pela autoridade palestina na época, que a considerou pró-Israel.
Hassan Chami, um empreendedor e ativista de origem libanesa xiita que vive em Dearborn, é mais cético.
Ele estava na recepção feita para Trump em um restaurante da cidade nesta semana, com muitos líderes da comunidade. “Vocês terão paz no oriente Médio”quando eu for presidente, “não com esses palhaços que governos os EUA agora”, disse Trump no café halal. Chami o interpelou. “Perguntei a ele: você acha que o que está acontecendo em Gaza é genocídio?” O republicano não respondeu.
Chami vai votar em Jill Stein. Ele se identifica como um conservador nos costumes foi a favor de veto a certos livros nas escolas e diz que só acredita “em dois gêneros, homem e mulher”. “Mas não posso votar na direita, porque são muito racistas, Trump disse coisas horrorosas sobre muçulmanos.”
Mesmo assim, não condena quem vai votar no republicano. “Acho que os democratas têm de ser punidos pelo que fizeram.”
O Sheikh Ali Barakat, estudioso do islamismo da vertente xiita, também vê a eleição sob essa lente.
“Sei que Trump está dizendo para os muçulmanos é preciso ter cessar-fogo e uma solução de dois estados, enquanto diz para a AIPAC [principal lobby pró-Israel] que eles têm o direito de se defender e garantir sua segurança”, diz. “Mas acredito que Trump, se vencer, poderá ignorar a pressão da AIPAC, porque ele não pode concorrer a mais um mandato Já Kamala não vai enfrentar a AIPAC, porque vai querer se reeleger.”
Os prefeitos da segunda e terceira cidades de maior porcentagem de árabe-americanos nos EUA, Amer Ghalib, de Hamtramck, e Bill Bazzi, de Dearborn Heights, anunciaram apoio a Trump. Já o prefeito de Dearborn, Abdullah Hammoud, criticou Trump, mas não vai apoiar ninguém nesta eleição.
Os poucos líderes que anunciaram publicamente apoio à candidata democrata sofreram pressões. Ahmed Chebbani, da Câmara Árabe-Americana de Comércio, anunciou o endosso aos democratas em coletiva de imprensa e foi recebido por manifestantes com cartazes com os dizeres “vergonha”. O vice-chefe do condado de Wayne, onde ficam essas cidades, Assad Turfe, tem sido chamado de “vendido” nas redes sociais por ter anunciado seu voto em Harris.
Os democratas têm tentado conquistar o voto árabe, mas tiveram tropeços. Não permitiram que uma ativista palestina discursasse na convenção nacional democrata neste ano. E Kamala fez campanha com Liz Cheney, ex-deputada republicana que é filha do ex-vice-presidente Dick Cheney, um dos arquitetos da Guerra do Iraque, odiado pela comunidade árabe.
Trump não deixou passar.
“Cheney quer entrar em guerra com todos os muçulmanos, se Kamala tiver mais 4 anos, o Oriente Médio vai passar as próximas quatro décadas em chamas”, disse Trump em comício na região nesta semana.
PATRÍCIA CAMPOS MELLO / Folhapress