‘Aprendi com minha filha que bater não educa’, diz sobrevivente de violência doméstica

ALMIRANTE TAMANDARÉ, PR (FOLHAPRESS) – “Por que quando um homem bate em uma mulher é violência e quando um adulto bate em uma criança é educação?”

A paranaense Eloiza Ribeiro, 32, ficou em choque quando ouviu esse questionamento da filha Laizy. A menina tinha 10 anos e tentava impedir que a mãe batesse em sua irmã, três anos mais velha que ela.

Eloiza, que havia engravidado pela primeira vez aos 16 e se separou do ex-companheiro após anos sofrendo violência doméstica, percebeu ali que teria que interromper um ciclo que vinha se perpetuando há gerações com as mulheres de sua família.

“Eu fui criada apanhando. Vivi a violência no lar como filha e como esposa. Quando minha filha colocou um limite, eu vi que ia ter que aprender a educar de outra forma. Eu não respeitava o corpo delas. Como elas iriam saber o que é respeito?”, afirma.

Eloiza, que estuda ciências sociais e faz faxina para se sustentar, mora em Almirante Tamandaré, cidade da região metropolitana de Curitiba considerada uma das 50 mais violentas de todo o Brasil, segundo o Anuário de Segurança Pública de 2023. Laizy, que hoje tem 13 anos, confrontou a mãe sobre a legitimidade de bater nos filhos depois que participou de palestras sobre a prevenção de abusos sexuais e outros tipos de violência na Marista Escola Social Ecológica, onde estuda.

A escola criou protocolos para a conscientização de alunos, familiares e colaboradores a respeito do assunto e treinou todo o quadro funcional para acolher e encaminhar denúncias. A ideia é promover o autocuidado e desnaturalizar violências muitas vezes aceitas pela sociedade. Na casa de Eloiza, esse trabalho já deu resultado. “Minha filha é responsável pela mãe que eu sou hoje. Precisamos criar uma geração melhor.”

Leia o depoimento de Eloiza à Folha de S.Paulo.

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“A violência no lar é uma coisa que eu vivo desde sempre. Vivi como filha, como esposa e como mãe, né? Porque quando você aprende apanhando, você ensina batendo. A Laizy foi quem colocou um limite. Ela é responsável pela mãe que eu sou hoje.

Ela nunca apanhava porque ela era a que dava menos problema, mas desde os seis anos ela defendia os irmãos. Quando o pai dela vinha me agredir, ela entrava na frente. Eu me separei quando ela tinha 5 ou 6 anos, tive que fugir do meu ex-marido, fui para outra cidade com três crianças pequenas, desempregada, não tinha nem o que comer. Era tanta sobrecarga… Deixei de ser a vítima e me torneia violenta.

Aí um dia, quando ela tinha uns nove anos, ela me disse: “Por que quando um homem bate em uma mulher é violência e quando um adulto bate em uma criança é educação?” Foi um choque para mim. Percebi que teria que me reeducar, porque violência não é educação.

Quando a gente bate numa criança, o que a gente fala? Que ela mereceu. Quando uma adolescente ou uma mulher é vítima de violência, ela sente como se ela merecesse, como se tivesse procurado, porque a gente construiu isso desde criança.

A criança precisa aprender a se proteger, porque nem sempre a família sabe proteger essa criança. Eu era uma menina muito esperta para minha idade, só que eu não fui ensinada a me defender de algumas situações. O máximo de educação sexual que a gente tinha era a professora ensinar como usar uma camisinha, como era o útero, os órgãos genitais. Mas eu não fui preparada para um relacionamento com uma pessoa violenta.

Eu tive que sair de casa, com 15 anos estava casada com um abusador, com 16 fui mãe, com 18, mãe de outra e com 21, de outro. Quando eu lembro da minha adolescência eu penso: Meu Deus, eu era uma criança, como é que uma menina de 15 anos sabe o que quer para a vida?

Até hoje minha mãe fala: “Como a gente não enxergava?” A gente conversa sobre os erros dela e os meus erros como mãe e como não repetir com as meninas. Ela pede desculpa, e diz: “Filha, infelizmente eu não tinha acesso à informação, mas você pode fazer melhor com suas filhas hoje”. Minha mãe tem 60 anos. Outro dia ela estava assistindo à novela, viu uma cena de um abuso e falou: “Meu Deus, fui abusada”. Esse é um tabu de todas as últimas gerações.

O que minhas filhas aprendem na escola elas ensinam em casa. Elas falam abertamente sobre corpo, respeito, feminismo, homofobia, racismo, sabem que têm o direito de dizer não.

Elas vão ter uma chance de ser o que eu não tive. Vão ter adolescência, tempo de namorar, de aproveitar a vida, de estudar. Não têm necessidade de engravidar, sair de casa, procurar conforto e moradia em outros lugares, porque aqui em casa elas têm acolhimento, têm voz.

Elas me ajudaram a interromper o ciclo de violência. Se desconstruir é muito difícil, mas temos que criar uma geração melhor do que a nossa. Não uma geração de vítimas e abusadores. Minha outra filha sempre fala: “A mamãe mudou muito. Que bom.”

FLÁVIA MANTOVANI E MATHILDE MISSIONEIRO / Folhapress

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