BUENOS AIRES, ARGENTINA (FOLHAPRESS) – Aceitam notas danificadas?, questiona um senhor a um funcionário na entrada da principal unidade do atacadista Diarco, uma das principais redes de supermercado da Argentina, no bairro de Barracas, limite da capital com a Grande Buenos Aires.
Em uma campanha de marketing e, porque não, de pura necessidade empresarial, a rede lançou o seu próprio dólar para somar-se aos infinitos outros tipos de câmbio que já existem no país. A conversão é mais vantajosa do que a do dólar oficial e mesmo do informal “blue”.
A campanha vem em um momento no qual a Argentina, mergulhada em um dos maiores ajustes econômicos de sua história, observou a queda mais intensa do consumo dos últimos três anos (desde o aprofundamento da crise na pandemia de Covid-19).
Dados da consultoria local Scentia mostram que houve queda de 16,1% no consumo de julho passado em em relação ao mesmo mês do ano anterior. Foram quedas consecutivas no indicador desde janeiro, segundo mês de Javier Milei na Casa Rosada.
A rede atacadista saiu na dianteira e passou a aceitar dólares em suas unidades. Foi além ao criar o seu próprio câmbio, que muda todos os dias e é avisado na porta dos estabelecimentos e no site do grupo.
O cliente ainda pode comprar com notas de qualquer valor (na Argentina privilegiam-se as notas de 100 dólares, especialmente para o aluguel), com notas velhas e sujas. Danificadas? A unidade de Barracas não as aceita, para a frustração do cliente, mas há outras que sim.
Até os esnobados dólares de “cara pequena” (cara chica) são aceitos. Tratam-se das notas americanas emitidas entre 1914 e 1996 que trazem o rosto de Benjamin Franklin pequenino e que não eram aceitas na maior parte dos estabelecimentos até há muito pouco tempo.
A ideia é fazer com que muitos dos clientes que usualmente convertem suas economias em dólares, a moeda das transações na Argentina devido às constantes desvalorizações do peso, possam tirar o dinheiro do colchão e pagar o supermercado.
Ainda mais em um fim de mês no qual a expressão “no alcanza”, sobre o fato de que o dinheiro dos salários já acabou, é tão comum.
Os que esperavam críticas do governo, que hoje tenta fechar a chamada brecha cambial, ou seja, as diferenças entre os vários tipos de dólar, tiveram uma surpresa. A Casa Rosada saudou a iniciativa.
“É uma decisão comercial e está muito bem, é preciso ser livre para promover a moeda que lhes pareça melhor”, respondeu o porta-voz de Milei, o também economista Manuel Adorni, a um jornalista local. “E vocês, o que pensam da medida?”, emendou ele em pergunta à imprensa presente em sua entrevista coletiva diária.
De certo modo, a iniciativa do Diarco vai ao encontro do esforço da Casa Rosada para levar dólares aos caixas dos bancos. Há poucos dias o próprio Banco Central, longe de independente, distribuiu normativa em que incentiva as instituições financeiras a aceitarem depósitos em moeda estrangeira, mesmo os dólares “cara pequena” e mesmo as notas danificadas (desde que ao menos metade dela esteja inteira).
O “dólar Diarco” virou assim personagem de uma Argentina regada a queda do consumo, do poder de compra e da atividade econômica.
Ao longo dos últimos três meses, houve uma tênue recuperação dos salários formais (em junho, aumentaram 6,2%, ganhando da inflação de 4,6%, segundo o instituto de estatísticas local), mas isso ainda não se reflete no consumo, que segue e seguirá em queda.
Diretor da Scentia, que calcula o tombo no consumo local, Osvaldo del Río diz que é preciso levar em conta o que se observou no segundo semestre de 2023, quando, na contramão da primeira metade daquele ano, o consumo só fez crescer. “Era período eleitoral, e sempre os governos tentam impulsionar o consumo para gerar bom humor social.”
Era uma época em que, sob o governo do presidente peronista Alberto Fernández, hoje investigado por violência de gênero, o país registrava cifras de inflação exorbitantes, havia, por outro lado, um controle de preços nos mercados, amplos benefícios sociais e muitas pessoas de fora da obrigatoriedade de pagar o imposto de renda. Tudo isso mudou em poucos meses com Milei.
“Lentamente os ingressos da população começam a ganhar da inflação, mas o ‘gap’ que foi gerado é tão grande que levará tempo para uma recuperação total”, diz Del Río.
“O governo afirma, e antes pensávamos assim, que a recuperação seria em V; ou seja, que bateríamos no piso para imediatamente recuperar. Hoje, ao menos para o consumo, já sabemos que será numa espécie de U, com um tempo considerável para retomar o crescimento.”
O nível do uso da capacidade instalada na indústria argentina, que mede a porcentagem do parque industrial em operação, está em 54,5% (no Brasil, está em 83,4%). A atividade de construção, uma das mais afetadas no país, acumula queda de 35,2% em um ano.
Enquanto isso, Milei diz que está conduzindo o “maior ajuste fiscal da história da humanidade”. Durante participação recente no evento do Council of the Americas em Buenos Aires, respondeu às cobranças que recebe do mercado para derrubar o “cepo”, nome dado ao emaranhado de controles cambiários no país.
“Derrubá-lo antes de solucionar os problemas de fundo é muito pior; há que se respeitar os tempos do nosso programa econômico. A época do populismo monetário, esse câncer de décadas, acabou”, afirmou. “Não podemos sair de uma crise com mais emissão de moeda.”
MAYARA PAIXÃO / Folhapress