Armênios expulsos de Nagorno-Karabakh lamentam vida deixada para trás

KORNIDZOR, ARMÊNIA (FOLHAPRESS) – “Um pouco de trigo, um pouco de sal. Era o que havia. Quando aparecia uma garrafa de água com gás, fazíamos festa”, conta Artur Bardasayan, 51, descrevendo como foram os últimos meses de sua vida no enclave armênio étnico de Nagorno-Karabakh, antes de uma invasão relâmpago do vizinho Azerbaijão, em setembro do ano passado.

Bardasayan e outros 120 mil armênios foram expulsos e tiveram cerca de 24 horas para deixar o território pela estrada que levava à Armênia. Foram obrigados a deixar tudo para trás, de documentos a utensílios de cozinha, de roupas a animais.

A região havia sido cercada pelo Azerbaijão em 2020, quando se chegou a um frágil cessar-fogo, e o ano de 2023 estava sendo o pior. A autocracia azeri havia imposto um bloqueio de comida e energia, e a população, que era formada por cerca de 95% de armênios, relatava passar fome havia nove meses.

Motorista de ônibus e mecânico, pai de três, Bardasayan se voluntariou para defender o enclave. Na hora da invasão, havia acabado de deixar o posto militar devido à troca de turno. Os cinco que chegaram para substituí-los foram mortos.

Na Armênia, a primeira parada do êxodo foi o vilarejo de Kornidzor, que a Folha visitou. A cerca de dois quilômetros da fronteira azeri e com apenas 800 moradores, foi ali que os expulsos receberam água e comida pela primeira vez.

Os 120 mil se espalharam pela Armênia, mas uma ou outra família, sem parentes a quem recorrer, acabou ficando no vilarejo. É o caso de Bardasayan e de Aran Hovsepyan, 29, que se casaria no fim do mês.

Hovsepyan hoje mora com sua mãe e irmão numa casa emprestada no vilarejo e vivia da agricultura de subsistência em Nagorno-Karabakh, plantando brócolis, vagens e batatas, entre outros legumes. “Tínhamos animais e plantações, por isso tivemos mais sorte do que quem morava na capital. Não passamos fome”, diz ele.

Mas, ao fugir para o outro lado da fronteira, teve de deixar seus animais e recomeçar do zero. Conseguiu retomar a criação de galinhas e de porcos, que serão a base da comida servida em seu casamento.

Sua mãe, Susane, ainda pensa na expulsão 24 horas por dia. “Sofro e sinto o tempo todo”, conta ela, que, além de deixar para trás três casas –uma delas recém-construída para o filho que iria se casar–, teve de abandonar seus mortos. “Todos os túmulos de nossa família estão lá.”

Susane diz que seus parentes são de Nagorno-Karabakh “desde sempre, há centenas de anos” e que resolveu ficar na pequena Kornidzor “porque nessa vila falam o mesmo dialeto e há o mesmo ar. Aqui, respiro o ar que respirava lá.”

É um ar perigoso, pois Kornidzor está cercada pelo Azerbaijão ao norte, ao leste e ao sul, e franco-atiradores azeris espreitam a região. A prefeita Lusine Karamyan, por exemplo, não deixa a reportagem se aproximar de um tanque abandonado ao lado de um parque infantil. No mais, idosos se sentam às portas de suas casas, meninos jogam bola nas ruas de terra, burricos passam, e a vida segue.

A 25 km de Kornidzor está Goris, uma cidade de 20 mil habitantes onde alguns dos expulsos também fincaram residência. Anush Hampartsumyan vendia pães e doces em Nagorno, mas não encontrou espaço nesse nicho quando chegou à Armênia.

Ela chora ao lembrar que não pegou nem roupas para os filhos quando saiu de casa, pensando que logo estaria de volta. Já perdeu a esperança de retornar, e seu marido hoje só fuma e bebe. Com a ajuda da organização feminina Sose, Anush aprendeu uma nova profissão: cabeleireira.

A reportagem aproveita a viagem e solicita seus serviços de tesoura, o que Anush executa com muita satisfação. “Tenho três ou quatro clientes por dia”, diz ela, que cobra 1.000 drames (R$ 13) pelo corte e o dobro pelo serviço completo. O pagamento foi pelo completo, apesar de a escova ao final ter sido dispensada.

Armênios e azeris povoam a região caucasiana há milênios, e ambos se tornaram repúblicas no mesmo dia, 28 de maio de 1918, com o colapso dos impérios russo e otomano, no último ano da Primeira Guerra Mundial.

A liberdade durou pouco, e ambas foram incorporadas pela União Soviética em 1920. De forma arbitrária, o líder soviético Josef Stálin determinou que Nagorno-Karabakh ficasse com os azeris, apesar de 95% da população ser armênia.

Com o progressivo desmantelamento do poder soviético sob Mikhail Gorbatchov, de 1985 à frente, os armênios conseguiram sua independência em 1991. Seguiu-se uma guerra contra os azeris, vencida pela Armênia, que criou uma zona tampão de cidades desocupadas à força em torno de do território autônomo.

Quase três décadas depois, em 2020, o Azerbaijão invadiu Nagorno-Kabarakh e conquistou-o em 44 dias, além da zona tampão, deixando apenas a capital para os armênios. Até que, em 2023, tomaram-na de vez.

Vanush Melkonyan era um jogador de futebol que havia estreado no campeonato armênio pelo Locomotiv Yerevan em 2019. Ao fazer 18, no entanto, precisou prestar o serviço militar obrigatório, fazendo treinamento de defesa terra-ar no sul do país.

No dia 27 de setembro de 2020, quando o Azerbaijão invadiu a zona tampão, deram-lhe um fuzil AK-47 e o mandaram para a trincheira. Ele conta que passou 12 horas ali, encolhido para não levar tiros da infantaria azeri e tentando acertar aviões com seu lança-mísseis obsoleto.

Até que às 17h um míssil caiu ao seu lado e abriu buracos em suas duas pernas, destruindo as veias da coxa, mais tarde substituídas por tubos de plástico. Melkonyan perdeu dois amigos de seu vilarejo, mas sobreviveu, apesar de sua carreira futebolística ter sido encerrada naquele momento.

Recuperado, fez aulas de fotografia e se tornou assistente de um dos fotógrafos mais importantes da Armênia. “Mas eu ainda penso muito em futebol. Talvez eu me torne treinador”, conta. As fotos dessa reportagem foram tiradas por ele.

Para especialistas da APRI (Applied Policy Research Institute), braço de estudos da Ugab (União Geral Armênia de Beneficência), é uma questão de tempo até que o Azerbaijão invada novamente o país.

Na visão do pesquisador Sergei Melkonian, nada acontecerá em 2024, pois o Azerbaijão será o anfitrião da COP29, no fim deste ano. “Mas, em 2025, acredito que haverá nova guerra”, afirma.

Seu colega Leonid Nersisyan, especialista em defesa, vê duas possibilidades. “A primeira é ao norte, onde há enclaves de maioria azeri dentro da Armênia. Mas a mais importante é ao sul, onde os azeris querem um corredor ligando o Azerbaijão à República Autônoma de Nakhchivan, um território azeri que fica do outro lado da Armênia”, afirma.

“A Armênia concordou com um corredor, contanto que fosse controlado por forças armênias. Mas o Azerbaijão não aceita e quer controle total do corredor, dividindo o sul da Armênia do restante do país. E vale dizer que a Armênia reconhece os enclaves azeris em seu território, apesar de o Azerbaijão não fazer o mesmo com os enclaves armênios lá”, diz Nersisyan.

Com um Exército de 45 mil a 50 mil soldados, a Armênia se prepara para a possibilidade de enfrentar de 80 mil a 90 mil azeris. O desequilíbrio de forças se mantém no equipamento militar das duas nações. A Armênia possui atualmente cerca de 100 tanques e 19 aviões de guerra, contra respectivos 400 e 50 do Azerbaijão.

IVAN FINOTTI / Folhapress

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