MIAMI BEACH, EUA (FOLHAPRESS) – É insólita a cena. Duas mulheres de vestido de gala, taças de champanhe na mão, tiram o salto agulha em plena areia da praia para limpar os sapatos, nocauteados contra a madeira do píer. Seria estranho, mas estamos em Miami Beach, o balneário americano que ferve todo mês de dezembro com a feira Art Basel e seus eventos paralelos. Todo mundo quer seu lugar ao sol.
Nunca, no entanto, o sentido de deslocamento pareceu tão forte nas areias desse Atlântico azul turquesa. O mercado de arte anda zonzo com uma crise que só agora dá sinais de trégua, e os Estados Unidos tentam entender mais uma vez seu lugar num mundo em guerra, no rastro da vitória de Donald Trump na corrida à Casa Branca e da venda de uma banana por R$ 37 milhões semanas atrás, obra do italiano Maurizio Cattelan.
Ele, aliás, e outras bananas voltaram à maior feira das Américas. O artista tem duas obras no evento que deixam claro o estado de espírito da maior economia do mundo rachada ao meio pela política. Uma delas é uma bandeira americana dourada, lembrando que ele já fez um vaso sanitário de ouro puríssimo, só que essa flâmula à venda por R$ 4,4 milhões foi toda baleada. A metáfora passa longe. Da mesma forma que seu dedo do meio esculpido em mármore, obra famosa na praça em frente à Bolsa de Valores de Milão, agora volta a estar à venda pela americana Gagosian.
Enquanto isso, um gênio do marketing pensou em distribuir bananas Chiquita de graça aos VIPs no dia de abertura da feira. Fashionistas e ricaços entraram no ritual de devorar a fruta entre uma e outra taça de champanhe.
Mas os sorrisos são um tanto amarelos, como as bananas. Elas também aparecem, vale dizer, na bela série “Campo de Batalha”, de Antônio Henrique Amaral, na paulistana Casa Triângulo, que põe à venda duas telas de sua alegoria sobre a ditadura militar em que a fruta aparece destroçada por garfos.
Num desses estranhos curto-circuitos entre arte, marketing, política e zeitgeist, é curioso lembrar que, enquanto os Estados Unidos se repensam como nação, as bananas Chiquita também são um símbolo candente do imperialismo do país em intervenções que levaram ditaduras à América Latina, região do mundo celebrada pela feira cheia de bananas.
Tudo é muito colorido. Estamos numa parte dos Estados Unidos em que o espanhol é língua franca, os nomes dos colecionadores e donos de museu são todos latinos e a política é de extrema direita, com Trump em Mar-a-Lago como eminência parda e livros sendo banidos das bibliotecas.
Talvez isso explique tantas bandeiras americanas nesta Art Basel Miami Beach, baleadas, dilaceradas, recosturadas, reinventadas. Testemunhamos artistas ressentidos com o cenário político e colecionadores super-ricos mais dispostos a gastar comprando suas obras por causa desse cenário político.
Há bandeiras para todos os gostos. Uma rara pintura da década de 1980 do artista conceitual Ed Ruscha, à venda na Gagosian por R$ 54,4 milhões, mostra uma delas tremulando na brisa com tarjas pretas em cima e em baixo. Obra antiga do americano Robert Mapplethorpe, na Gladstone, mostra outra bandeira na brisa, toda rasgada. O chinês Ai Weiwei fez uma versão de Lego, com as cores invertidas. Vik Muniz tem uma colagem em que personagens reais e inventados, de Betty Boop a Josephine Baker, se infiltram nas listras vermelhas e brancas.
Hank Willis Thomas, um dos artistas mais relevantes dos Estados Unidos na atualidade, usou retalhos de velhas bandeiras para costurar uma nova, com o céu estrelado no meio e as listras, como barras das grades de uma prisão, flutuando em volta. O italiano Mario Schifano, famoso artista já morto da escola pop de Roma, tinha à venda uma paisagem em que o céu são as estrelas representando 50 estados do país, obra da americana Tornabuoni. Na alemã Neugerriemschneider, James Benning mostra imagens de uma câmera de segurança que flagra uma bandeira americana sendo triturada pelo vento durante um furacão na Carolina do Norte, num literal aceno à máxima de que tudo que é sólido desmancha no ar.
Mais seca, Barbara Kruger mostrou um trabalho potente na Sprüth Magers, megagaleria com sedes em Berlim, Londres, Nova York e Los Angeles. Sua obra reinterpreta o hino à bandeira americana que crianças são ensinadas a repetir desde a entrada no colégio. Num vídeo só com palavras na tela, ela troca devoção por aderência e ansiedade declarada à bandeira, e a palavra república é trocada por ressentimento, resiliência e resistência. A liberdade vira exibicionismo e escárnio. O povo se torna os ricos, os pobres, os tomadores e os doadores.
De trás de seus enormes óculos de grau de aros dourados, a nova diretora da feira, Bridget Finn, faz uma avaliação do estado atual da nação. “Estamos sentindo uns climas diferentes”, ela diz. “Os leilões em Nova York foram menores, mas tiveram resultado. Depois das eleições, esperamos mais estabilidade, e os VIPs têm reagido bem. Temos a maior feira no mercado mais robusto do mundo. Ainda é cedo para saber como serão as coisas no pós-eleições, mas o mercado deu uma acalmada.”
É uma acalmada, no caso, que envolveu a venda, nas primeiras horas da feira, de obras na faixa dos milhões de dólares, como um Keith Haring de R$ 12 milhões, na Gladstone, um Robert Rauschenberg de R$ 13,9 milhões na Thaddaeus Ropac, galeria com sedes em Londres, Paris, Salzburgo e Seul, além de alguns Georg Baselitz na faixa dos R$ 15 milhões na mesma galeria.
Enquanto o estado americano da Flórida se esforça para dobrar as apostas num mercado antes dominado por Nova York, com grandes fundos de investimento migrando para Miami e Palm Beach e arranha-céus sendo construídos a toque de caixa por bilionários querendo uma paisagem mais quente para chamar de casa, existem alguns tremeliques à frente.
Nos bastidores, há sinais de apreensão. A Sothebys, uma das maiores casas de leilões do mundo, foi socorrida com uma injeção de capital de cerca de R$ 6 bilhões vindos dos Emirados Árabes Unidos. A feira Frieze, grande rival do grupo que comanda a Art Basel, pode ser vendida em liquidação, a gigantesca galeria Marlborough fechou as portas depois de oito décadas e os atuais titãs David Zwirner e Pace estão demitindo em massa.
O sonho americano, se não arruinado, parece mergulhado um pouco em trevas, só um pouco. Um excesso de trabalhos dos punks e subversivos do país nesta feira, entre eles Andy Warhol, Keith Haring e Jean-Michel Basquiat, mostram ao mesmo tempo o grau da crise e uma necessidade de as galerias de se ancorarem em vendas certeiras.
Galerias brasileiras, em peso nesta feira, não correram riscos, todas elas com obras consagradas levadas para fechar negócio. Celebrando cinco décadas de galeria, a Raquel Arnaud tinha um raro Sérgio Camargo à venda por R$ 8,4 milhões. Luisa Strina, também com 50 anos de estrada, apostou nos grandes nomes de seu elenco, como Anna Maria Maiolino, estrela da última Bienal de Veneza.
“O mercado está difícil para todo mundo. Temos que pensar que o mundo está em guerra, tem essa insegurança pairando e o dólar a R$ 6”, diz Strina. “Mas a feira está fazendo um esforço para se rejuvenescer.”
De fato, o número de galerias estreantes neste ano foi o maior em décadas, com mais de 30 casas, entre elas as novatas paulistanas Carmo Johnson Projects, que causou frisson com obras do coletivo indígena Mahku que também passou pela Bienal de Veneza, e a Verve, com obras de Randolpho Lamonier, artista em plena ascensão. A Estação, que neste ano comemora quatro décadas de vendas, foi outra a estrear nesta Art Basel Miami Beach.
Os motores dessa ascensão que o New York Times chama de sabor brasileiro na feira têm a ver como uma redução nos estratosféricos preços dos estandes e dois nomes de peso do país no comitê de seleção da feira, Márcio Botner, da galeria A Gentil Carioca, e Thiago Gomide, da Gomide&Co.
“O momento pede uma coisa mais para cima, alegre”, diz Gomide. “A América Latina continua sendo a queridinha do momento.” Resta saber até quando.
SILAS MARTÍ / Folhapress