SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A tomada indígena do circuito de museus, galerias e bienais, que vinha se desenhando desde antes da pandemia, atingiu este ano seu ápice nas instituições brasileiras -e pode seguir forte em 2024. O ano foi repleto de exposições de arte de povos originários, de dentro e de fora do país, num prelúdio para a ocupação indígena do pavilhão do Brasil na Bienal de Veneza de 2024.
O Museu de Arte de São Paulo, o Masp, dedicou todas as as suas exposições de 2023 para os indígenas, com destaques para a mostra de desenhos abstratos do yanonami Sheroanawe Hakihiiwe e para a exposição coletiva “Histórias Indígenas”, dedicada a apresentar, em oito núcleos, a arte de povos de diferentes regiões do mundo, da Austrália à Finlândia, passando por Canadá e México.
A Pinacoteca mostrou em seu átrio uma instalação de Denilson Baniwa onde ocorriam aulas de línguas indígenas, e, no circuito comercial, as galerias paulistanas encheram suas paredes de pinturas dos povos originários, como nos casos da mostra de Aislan Pankararu na Galatea e de Seba Calfuqueo na Marília Razuk.
Enquanto isso, a Fundação Bienal de São Paulo anunciou que a participação do Brasil na Bienal de Veneza de 2024, uma das principais vitrines da arte contemporânea internacional, será comandada por Glicéria Tupinambá, artista sem um corpo de obras consistente, mas que realizou uma das principais obras de arte do ano -um manto tupinambá de penas.
A artista vai escolher outros indígenas para uma mostra coletiva no pavilhão brasileiro nos Giardinni, nesta que será a primeira Bienal de Veneza comandada por um latino, o brasileiro Adriano Pedrosa, diretor artístico do Masp, o que deve aumentar a cotação do Brasil no circuito internacional das artes.
A veste feita por Tupinambá foi resultado de análises técnicas e espirituais do manto tupinambá do século 17, que estava desde então em território europeu. Neste ano, o Nationalmuseet, Museu da Dinamarca, anunciou a doação do manto secular ao Museu Nacional do Rio de Janeiro, depois de tratativas envolvendo o embaixador brasileiro no país e cartas de indígenas tupinambás.
A hipótese mais aceita é a de que o manto foi levado à Europa durante o período de ocupação holandesa no Brasil colônia. Seu retorno reascendeu o debate sobre a repatriação de relíquias, especialmente aquelas tiradas de seus territórios de criação durante períodos de colonização.
A questão é um ponto crítico em ascensão no mundo das artes. Recentemente, Grécia e Reino Unido entraram em disputa pelas esculturas do Parthenon ateniense, que atualmente estão no Museu Britânico. As peças foram extraídas do templo por ordem do Lorde Elgin, embaixador britânico no século 19, quando a Grécia estava sob ocupação do Império Otomano –que negociou com o Reino Unido.
Em paralelo, neste mês, a justiça francesa autorizou a venda de uma máscara do povo fang do século 19, originária do Gabão, pelo equivalente a R$ 22,5 milhões, contrariando pedidos de uma associação de gaboneses que exigia a devolução da peça ao país de origem.
O revisionismo também marcou a exposição de obras do francês Paul Gauguin, no Masp. O museu adotou um tom crítico para exibir as telas de mulheres taitianas nuas feitas pelo pintor no final do século 19, momento em que artistas das vanguardas europeias se apropriavam de imagens e formas chamadas de “primitivas”, isto é, da produção criativa de culturas africanas e asiáticas.
Os povos originários também marcaram presença em peso na 35ª Bienal de São Paulo, a primeira desde o início da pandemia a ocorrer sem qualquer restrição sanitária. O elenco da maior mostra de artes do Brasil, composto sobretudo por artistas não brancos, teve ainda a participação de muitos negros com trabalhos monumentais expostos, a exemplo da floresta de bambus de Ayrson Heráclito e Tiganá Santana e da instalação “Parlamento de Fantasmas”, do ganense Ibrahim Mahama.
Foi um ano de grandes mostras dedicadas a reunir trabalhos de artistas negros. A maior delas, “Dos Brasis”, aconteceu no Sesc Belenzinho e reuniu trabalhos de 240 artistas -a seleção era ampla e representativa, traçando um panorama histórico da arte negra no país, porém de difícil apreciação, visto que os organizadores encheram de obras um espaço onde mal cabiam todas.
Em Inhotim, o museu a céu aberto colado em Brumadinho, em Minas Gerais, duas mostras encerraram o ciclo da instituição dedicado ao pensador e articulador Abdias do Nascimento, com exposições feitas a partir do acervo do Museu de Arte Negra, instituição sem sede física criada por ele e que guarda uma coleção de pinturas, desenhos, gravuras, fotografias e esculturas de artistas negros.
O museu também dedicou uma mostra à Rubem Valentim, artista que criou uma vertente concretista a partir de símbolos de religiões afro-brasileiras, inaugurada junto de “Direito à Forma”, dedicada a reunir artistas negros que fogem da arte figurativa em seus trabalhos e pensam o abstracionismo.
Inhotim fechou o ano com um pavilhão temporário dedicado ao trabalho de Luana Vitra, artista em ascensão que também esteve na Bienal de São Paulo com uma obra que reflete sobre a exploração da terra em Minas Gerais.
Em São Paulo, o Museu de Arte Moderna fez uma reedição em menor escala da mostra “A Mão Afro-Brasileira”, pioneira em exibir arte negra há 35 anos, quando foi realizada pela primeira vez, organizada por Emanoel Araújo.
Artista e fundador do Museu Afro Brasil, Araújo também ganhou destaque em 2023 com o leilão de sua coleção. Parte de seu acervo -joias afrobrasileiras dos séculos 18 e 19, esculturas sacras e mobiliário moderno- foi a pregão, conforme pedido que fez em seu testamento.
As obras ficaram em exposição por semanas na galeria Bolsa de Arte, em São Paulo, até que dias antes do pregão o Ibram, Instituto Brasileiro de Museus, pediu à casa de leilões que suspendesse as vendas para que os museus vinculados ao órgão federal pudessem manifestar interesse ou não pelas peças.
Como era de se esperar, o primeiro lote, composto por 600 peças, acabou sendo comprado não pelo governo, mas por uma fundação do interior de São Paulo, que arrematou o lote de R$ 30 milhões em sua totalidade.
Afora isso, 2023 teve ainda a inauguração de espaços importantes. Em São Paulo, a Pinacoteca cortou a faixa de sua nova unidade, a Pina Contemporânea, um prédio aberto para a rua e para o parque da Luz com duas galerias expositivas.
Inhotim abriu para o público seu novo pavilhão, dedicado à Yayoi Kusama, a artista japonesa mais pop desde a segunda metade do século 20. É um espaço com duas obras imersivas que farão bonito nas selfies de Instagram.
Olhando-se para o mercado, um fato marcante foi o grande número de frequentadores da feira SP-Arte, em março. A edição, lotada em seus cinco dias de duração, fez os galeristas reclamarem que havia muita gente e que isso atrapalhava os negócios.
A lógica dos marchands era a de que mais público não significava mais vendas, mas apenas movimento extra. Segundo eles, este fluxo, como no caso dos grupos de visitas guiadas aos estandes com dez ou mais pessoas, interrompia suas negociações com compradores sérios.
O público da feira, que ficou em torno de 30 mil pessoas em seus cinco dias, aumentou porque não há mais um dia exclusivo para vips e colecionadores, como era tradição em edições passadas. A abertura para o público geral é uma exigência do Ministério da Cultura em projetos incentivados com a Lei Rouanet, como é o caso da SP-Arte.
Já para os galeristas brasileiros que foram à Art Basel Miami Beach, na Flórida, feira que é a maior vitrine para o mercado de arte latino-americana, não era possível falar em economia lenta. Para eles, a Bienal de São Paulo alavancou o passe de artistas antes desconhecidos no circuito, apesar de na feira os trabalhos de nomes fortes como Leonilson, Amilcar de Castro e Lygia Pape terem sido as estrelas.
JOÃO PERASSOLO E ALESSANDRA MONTERASTELLI / Folhapress