SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Estamos na época de não sermos colonos: o Brasil é um império constitucional; a mais viçosa vergôntea da Casa de Bragança é o seu primeiro imperador”, escreveu o homem que deu nome ao largo do Arouche em 1823, um ano após Dom Pedro 1°, a viçosa vergôntea (ramo), declarar a independência do país.
A essa altura, o advogado, militar e futuro primeiro diretor da faculdade de direito da São Francisco José Arouche de Toledo Rendon já tinha 67 anos. Sua morte, onze anos depois, logo decretaria o loteamento de sua chácara, que incluía boa parte da atual região central da cidade, como a praça da República, a vila Buarque e o largo do… Arouche.
A essa altura também, caso a inferência do botânico Ricardo Cardim esteja correta, nascia o chichá que dominaria aquela praça por dois séculos com seus 30 metros de altura e que veio ao chão derrubado por chuva e ventos na quarta-feira da semana passada (12).
“Duzentos anos é uma aproximação. Pode ter 210, 230, 300. Pelo porte, eu acredito que seja em torno dos 200 anos”, afirma Cardim, que iniciou um livro (não concluído) sobre a vegetação original da cidade de São Paulo em 2007. Nessa pesquisa, ele identificou as árvores mais antigas da cidade, e o chichá figurava em terceiro lugar. Em 2012, ele escreveu na Folha de S.Paulo sobre o tema.
Na opinião dele, a árvore não foi plantada, apenas ocorreu de nascer ali nas terras do José Arouche, com a semente levada pelo vento, a exemplo de outros chichás da cidade, como alguns no parque do Trianon e outros no Jaraguá. “É original da mata atlântica”, ensina.
Outro estudioso, porém, o pesquisador Douglas Nascimento, do site São Paulo Antiga, diz acreditar que o chichá foi plantado. “Isso é porque não achei outros na região. Na praça da República, por exemplo, não encontrei nenhum”, afirma ele.
Plantada ou não, o fato é que nasceu ali, por volta da época da independência, quando São Paulo tinha entre 10 mil e 25 mil moradores.
Hoje, são 12 milhões de habitantes, segundo o Censo de 2023. Ou 21 milhões, contando toda a metrópole. Mas temos um chichá a menos.
A queda do chichá (ou xixá, araxixá, coaxixá, pau-de-cortiça, pau-de-boia, boia-unha-de-anta, ou samuma-branca se você estiver na Bahia, ou embira-quiabo se for capixaba) não foi uma surpresa para Ricardo Cardim.
Em uma postagem de 24 de dezembro do ano passado em sua conta no Instagram, o botânico aparece em frente da planta falando como ela “incrivelmente sobreviveu a 200 anos de ameaça humana em seu entorno. Essa árvore tem raízes incríveis, que parecem lâminas de madeiras, que os povos originários usavam para comunicação, como se fosse um tambor”.
“Mas”, continuou o botânico, “há cerca de dez anos sofreu a queda de dois grandes galhos, que machucou muito a árvore, e ela está cicatrizando, fechando com a casca, mas parece que a madeira está sendo contaminada.”
Ao jornal, Cardim explicou que as feridas aparentavam estar infestados de organismos xilófagos. “Não subi para investigar. Mas São Paulo tem um problema grave de brocas e cupins asiáticos. Além disso, estava cheio de lixo, restos de fogueira. O ideal seria controlar as pragas, adubar, proteger. Mas ninguém presta atenção em árvores. Quebrou como um palito”, lamenta ele.
Segundo Cardim, o chichá não faz parte das espécies que forma anéis anuais, assim, não é fácil calcular sua idade real. “Seria possível fazer uma datação por carbono 14, mas aí teria que entrar uma universidade, um fundo de pesquisa. Mas se não se interessam pelas árvores em pé, vão se interessar pelas caídas?”.
Alguns relatos dizem que José Arouche, que foi tenente-general do Exército, usava a região do atual largo como espaço para exercícios militares. Mas o pesquisador Douglas Nascimento lembra que Arouche era um grande produtor de chá em sua chácara. Daí, para que manter uma árvore nativa ali se iria atrapalhar sua agricultura?
De fato, o advogado adorava a bebida e tinha 44 mil pés em suas terras. Em sua “Memória sobre a Plantação e Cultura do Chá e sua Preparação até Ficar em Estado de Entrar no Comércio”, o fazendeiro conta em 50 passos os segredos da boa colheita e torra, além de um apêndice ensinando como “extrair azeite das sementes para luzes [lamparinas]”.
“Pelo que tenho experimentado, o azeite do chá é preferível ao do amendoim; pelo menos lhe notei menos fumo [fumaça]”, escreveu o jurista, cujo palacete ficava na atual rua Santa Isabel.
“Há poucos relatos sobre a casa dele”, diz Nascimento. “A atual rua do Arouche era a entrada para sua propriedade. Mas, após as terras serem loteadas e vendidas, tornou-se lugar para muitos palácios do século 19, depois derrubados no século 20 para darem lugar aos prédios atuais”.
Segundo cartilha do Embrapa, assinada por Paulo Ernani Ramalho Carvalho, seu nome científico Sterculia curiosa é uma uma homenagem a Stercus, deus pagão das imundícies, por causa do forte cheiro das flores. O curiosa é de origem desconhecida.
O chichá tem madeira mole, flores e frutos, que são chamados pelo mesmo nome da árvore. “O nome vulgar chichá vem do tupi chi e uá, que significa “fruto repulsivo”, diz a cartilha. Outros autores, porém, indicam que a palavra quer dizer “fruto semelhante a mão ou punho fechado”.
Os invólucros dos frutos, de um vermelho bem forte quando maduros, são lenhosos e não comestíveis. Apenas suas sementes negras podem ser comidas após assadas ou cozidas, como castanhas.
Não foi possível, porém, encontrar alguém que tenha saboreado o chichá não confundir com a bebida andina chicha, sem acento, feita de milho para sabermos se é mesmo fedido ou não.
IVAN FINOTTI / Folhapress