FOLHAPRESS – Na ficção, o drama histórico é um subgênero contraditório na relação com o passado do mundo. Por um lado, a mimese característica do cinema, se bem trabalhada, transporta o espectador para outros tempos e espaços e tende a ofuscar a noção de que se trata de uma construção artificial de imagens e sons. Por outro, todo drama histórico, de partida, é um fracasso conceitual, no sentido de que nunca será de fato fiel a seja lá qual relato fizer, por mais que transpareça autenticidade.
Entre uma ponta e outra, “As Órfãs da Rainha” tenta se acertar no meio. O filme é fruto de intensa e apurada pesquisa sobre mulheres do Brasil colonial em fins do século 16, ao mesmo tempo em que assume o aspecto de fábula poética, compreende as próprias limitações e ainda tira vantagem delas.
Esta nova ficção da diretora mineira Elza Cataldo, sua primeira desde 2005, quando lançou o também drama histórico “Vinho de Rosas”, ambienta-se num pequeno vilarejo da Bahia em 1588 e acompanha três irmãs recém-chegadas de Portugal instalando-se a contragosto no lugar. Elas são enviadas pela rainha portuguesa supostamente para ajudar a povoar terras brasileiras com sangue de nobreza.
Alguns segredos em torno de suas origens vão surgir, enquanto elas se veem obrigadas a se adequar a vidas que não pediram e a submissões que nunca idealizaram.
Assim como em “Vinho de Rosas”, que tratava de uma filha do revolucionário Tiradentes, “As Órfãs da Rainha” parte da inquietação das personagens com a inserção forçada numa estrutura social na qual elas não parecem ser bem-vindas. Cada irmã lida com essa condição ao seu próprio modo e cada uma é representativa de um aspecto de origem da opressão sofrida por mulheres ao longo da história do país.
Leonor, papel de Letícia Persiles, casa-se com um judeu que esconde a religiosidade por temor de represálias antissemitas; Brites, vivida por Rita Batata, tem um marido abusivo e violento, cujo ressentimento pela dificuldade dela de engravidar só agrava a situação; e Mécia, interpretada por Camila Botelho, tem uma deficiência física, torna-se assistente do pároco e se envolve com um rapaz indígena, numa alegoria da miscigenação.
Cada núcleo das irmãs coloca no filme também personagens que as rodeiam, como a feiticeira local, a ex-escravizada e o padre. Todos e todas movem a engrenagem de construção dessa sociedade ainda em vias de se formar, iniciada por degredados enviados à colônia tropical e ali tocando o dia a dia da formação de uma nação.
Elza Cataldo mescla o detalhamento histórico –perceptível nos figurinos, direção de arte e cenografia, inclusive com uma vila inteiramente construída no interior de Minas Gerais para servir de locação– à liberdade poética de algumas inserções digitais que se assemelham a ilustrações e expansões das cenas.
O uso de computação gráfica aqui é uma forma elegante de quebrar a ilusão da suposta reconstrução fidedigna, assumir tal impossibilidade e permitir que o filme se mostre autoconsciente do próprio poder fabular.
“A arte não reproduz o visível; ela torna visível”, já dizia o pintor Paul Klee, assim citado por Godard em “A Chinesa”, de 1967. Até por isso alguns diálogos excessivamente expositivos em “As Órfãs da Rainha” por vezes destoam da liberdade estética adotada no fluxo mais errante, e por isso fascinante, da montagem.
É tornando visível o drama das irmãs que Elza Cataldo amplia o discurso no último terço, com a chegada da Inquisição ao vilarejo. O grupo católico tem a missão de perseguir quaisquer “pessoas suspeitas na fé”, que é como os padres definem quem não segue os preceitos da Igreja, em especial os judeus.
O filme se torna um suspense nervoso na sequência de depoimentos dos moradores a inquisidores sedentos por delação e pelo sangue de “infiéis”.
Toda a lenta construção anterior das relações entre os integrantes da vila culmina em instantes finais de tensão, nos quais o espectador se aflige com os destinos de cada um. No caminho ao desfecho um tanto desolador, fiel ao que viria a ser o Brasil dali adiante, o viés performático é assumido de vez, tanto na encenação, com atores e atrizes a falar diretamente à câmera enquanto depõem, quanto no enredo, que desafia personagens a se modularem diante dos inquisidores na tentativa de escapar da selvageria religiosa.
No vaivém entre reprodução e visibilidade da história brasileira, “As Órfãs da Rainha” encontra seu lugar com a típica discrição mineira.
AS ÓRFÃS DA RAINHA
Onde: Nos cinemas
Classificação: 12 anos
Elenco: Letícia Persiles, Rita Batata, Camila Botelho
Produção: Brasil, 2023
Direção: Elza Cataldo
Avaliação: Bom
MARCELO MIRANDA / Folhapress