SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Se tem uma coisa que vira a cabeça e tira Alcione do sério é o racismo. No início de sua trajetória na música, quando acompanhava Emílio Santiago (1946-2013) em um show, o “negão de tirar o chapéu” acabou impedido de entrar na boate por ser preto.
Na ocasião, ela não se calou: jogou uma lata de lixo na direção da dona do estabelecimento. “Aprendi desde cedo com meus pais que não deveria baixar a cabeça para ninguém e que não tinha marcas de chicote nas costas”, diz a cantora, que começou na carreira ainda criança, ao apresentar-se na Orquestra Jazz Guarani, regida por seu pai, Joao Carlos. Ela tinha 12 anos e ainda morava no Maranhão.
Criado oficialmente em 2011, o Dia da Consciência Negra sempre foi, para Alcione, todos os dias. Mas a data oficial, 20 de novembro, é especial para ela. Aliás, duplamente especial. Primeiro, pelo motivo mais óbvio: “É um momento para lembrarmos o motivo de estarmos aqui e para onde queremos caminhar. Um dia de reflexão e, claro, de luta por nossa identidade cultural.”
Também porque a Marrom celebra no dia seguinte seus 77 anos. Se nunca se deixou calar, não seria agora que o faria. Ela diz que faz questão de usar sua voz ativamente contra qualquer tipo de discriminação. “Se bem que as pessoas não têm muita coragem de tentar me atingir com seus preconceitos. Até porque não sou nenhuma ‘anja’.”
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PERGUNTA – O que o Dia da Consciência Negra representa para você?
ALCIONE – Não é uma simples data comemorativa, mas um dia para maiores reflexões, para repensarmos a trajetória do nosso povo. Nossa história sempre foi de lutas e batalhas duríssimas com caminhos árduos e muitas vezes tortuosos. É um momento para lembrarmos o motivo de estarmos aqui e para onde queremos caminhar. Um dia de reflexão e, claro, de luta por nossa identidade cultural.
P – Como lida com a questão da negritude em sua vida?
ALCIONE – Aprendi desde cedo com meus pais que não deveria baixar a cabeça para ninguém e que não tinha marcas de chicote nas costas. Temos uma ancestralidade forte, somos guerreiros e aos poucos estamos ocupando os espaços que nos são de direito. Nenhum ser humano é melhor do que o outro por conta de sua raça, cor ou credo.
P – Você completa 77 anos no dia seguinte, 21 de novembro. Há algo a comemorar?
ALCIONE – Coincidência mesmo. Mas eu gosto de exaltar as coisas boas que andam ocorrendo atualmente sem esquecer que ainda temos muito a conquistar. Felizmente, essas novas gerações, diferentemente do passado, quando as mudanças transcorriam de forma mais vagarosa, estão conseguindo avançar muito no combate aos preconceitos e em defesa dos nossos direitos. Estamos avançando; não o suficiente ainda, mas estamos caminhando.
P – Como contribuiu com a causa?
ALCIONE – Acho que sempre procurei contribuir como artista e como pessoa de diversas formas. Como artista, dando meus recados no palco e falando sobre os preconceitos, o racismo. Tentando alertar as mulheres, principalmente as pretas e as mais dependentes dos seus parceiros, sobre a violência e os perigos que as rondam diariamente.
P – Já participou ativamente de algum movimento?
ALCIONE – Sim, de diversos movimentos e campanhas educativas ou até mesmo em prol da sobrevivência de pessoas em condições muito precárias. Só para exemplificar: servia uma sopa para os moradores de rua em uma quadra que a Mangueira tinha no centro do Rio. A população era praticamente toda negra
P – Você se considera uma referência para outras pessoas pretas?
ALCIONE – Ter esse lugar de fala, conforme dizem por aí, traz algumas responsabilidades. Por isso, mencionei que aproveito o palco para mandar meus alertas. Aliás, qual mulher não canta para dar seus recados? Eu não perco uma chance, sou dessas (risos). Tem muita gente, sim, que me pede conselhos e, dentro do possível, eu procuro ajudar. Mas não sou nenhuma ‘pitonisa ou mãe Dinah’, não (risos).
P – A fama te poupa do racismo?
ALCIONE – Hoje, claro, sou conhecida e as pessoas não têm muita coragem para me atingir com seus preconceitos. Até porque não sou nenhuma ‘anja’ e a galera sabe bem disso. Mas, no início da carreira, quando estava voltando da boate em que trabalhava, um policial me abordou perguntando: ‘Neguinha, o que está trazendo nessa sacola?’. E eu, que carregava meu trompete, respondi que neguinha era o passado dele. Claro que não gostou, me chamou de ‘muito saliente’ e resolveu me colocar no camburão.
P – E como foi o caminho até a delegacia?
ALCIONE – No trajeto, uma das moças que estavam por lá me perguntou se eu era nova no pedaço. Mas, felizmente, quando chegamos à delegacia, fui ‘salva’ por um policial apelidado de Jacaré que me conhecia, pois já tinha me visto tocar em uma casa noturna. ‘Ei, deixa essa menina, libera ela, é da música, eu a conheço…’
P – Lembra de algum momento que tenha te tirado do sério?
ALCIONE – Certa vez eu estava com o Emílio Santiago [1946-2013] e a dona de um bar o proibiu de entrar na boate por ser preto. Joguei uma lata de lixo para trás [na direção dela] quando vi que ela estava chegando.
P – De modo geral, tem esperança de um futuro menos racista?
ALCIONE – Claro que tenho esperanças. Reitero que estamos abrindo caminhos, às vezes com muitas dificuldades, quase a fórceps, mas continuamos avançando. Nossas lutas vêm de muito tempo, transcendem séculos, mas nunca faltaram vozes contra a opressão. A cada dia, somos mais conscientes de nossa identidade e papel na sociedade
P – Já cogitou entrar para a política?
ALCIONE – Nem pensar!!! Ser candidata a algum cargo público? Jamais! Meu ‘trato’ com Deus nessa Terra foi para cantar, não posso mudar isso.
P – Acha que as novas gerações terão um mundo mais justo?
A ALCIONE – gente pode auxiliar fazendo o que está ao nosso alcance. Nós da Mangueira, por exemplo, criamos muitos projetos voltados a incentivar a garotada nos estudos. Em nossa escola mirim, a Mangueira do Amanhã, as crianças só podem desfilar se estiverem estudando, passando de ano. É uma forma de educar, formar um cidadão. Atitudes e projetos que se provam promissores, na minha humilde opinião, podem transformar vidas.
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LEONARDO VOLPATO / Folhapress