(FOLHAPRESS) O cinema de Richard Linklater é, em essência e desde seu primeiro longa ”Slacker”, de 1990, o do encontro entre seres. Não é de todo diferente neste “Assassino por Acaso”, bastante escorado pelos diálogos, mas que desta vez são portadores de informação e não tanto de duração e modulação. Estamos diante de um filme de gênero, com um conflito bem amarrado e de degustação fluida.
Antes de analisar este inusitado filme baseado parcialmente em uma história real, importa cartografar a prolífica obra de Linklater. Ancorada na potência da cena no que há de mais teatral e, portanto, cinematográfica, que são a troca, as falas e o gestual entre os personagens, ele vem trazendo à tela uma sociologia da existência, do tempo e de um estado de coisas tão universal quanto especificamente dos Estados Unidos.
Na antológica trilogia em que os personagens feitos por Ethan Hawke e Julie Delpy se encontraram por três vezes entre “Antes do Amanhecer”, de 1995, e “Antes da Meia-Noite”, de 2013, os assuntos mudaram da leveza juvenil para a densidade implicada da maturidade e do amor maior, com seus corpos trazendo essas marcas da vida.
“Boyhood”, de 2014, repete mais incisivamente a experiência, e o que ascende à tela é algo entre amor, desejo, fantasia, angústia, criação e finitude, ou seja, a vida e o que há nela de permanente e evanescente.
Do universal, Linklater também visita o específico que lhe é existencial, ou seja, a cultura que o marca como indivíduo. É disso que surgem, em viés ora mordaz e incisivo, filmes portadores de um inventário dessa cultura.
A corrida espacial nos anos 1960 é uma desculpa de Linklater para falar, divertidamente, sobre o absurdo da mídia, consumismo e outros excessos americanos em “Apollo 10 e Meio”, de 2022. Símbolo incontornável no cinema e no imaginário do século 20, a high school americana com seus carros, trotes e música estão em “Jovens Loucos e Rebeldes”, de 1993, revelando encanto e incerteza.
Em “Assassino por Acaso”, a abordagem é outra, ligada a uma cultura mais específica, que é a do próprio cinema e suas regras. Gary Johnson, papel de Glen Powell, um professor universitário que presta serviço à polícia e acaba atuando como falso matador profissional para obter provas contra os contratantes. Ele acaba se interessando por Madison, personagem feita por Adria Arjona, que pretende eliminar o marido abusivo.
A força motora está nos diálogos, sem dúvida, mas a carga é ilustrativa ligeira, prática, extremamente didática, mas, sendo justo, coerente a um filme que se assume como comédia romântica noir.
Não deixa de ser latente o quanto Linklater parece manter certas diretrizes de sua obra, como trazer à cena um repertório bem familiar ao cinema americano, dos carros às lanchonetes e personagens arquetípicos, tudo em compasso ligeiro, numa musicalidade visual mais distinta à de seus principais filmes, onde o tempo ali era elemento essencial ao drama.
Ainda assim, seria injusto não reconhecer que esse aspecto eficiente que pode ser confundido com genérico ou vice-versa acaba dissertando sobre um mundo onde o simulacro é uma virtude. Isso parece emanar já nas falas de Gary em aula frases feitas que, apesar de Friedrich Nietzsche e outros ilustres citados, parecem saídas de um livro de autoajuda, algo um tanto irônico, senão cínico.
De certa forma, “Assassino por Acaso” trai aquilo que os cinéfilos chamariam de marca autoral, mas não há rótulos definitivos para um cineasta que já reconstituiu o gênio criativo de Orson Welles no teatro dos anos 1930, em “Eu e Orson Welles”, e que tem à vista, entre seus próximos projetos, um filme intitulado “Nouvelle Vague”, sobre as filmagens de “Acossado”, de Jean-Luc Godard.
ASSASSINO POR ACASO
Avaliação Bom
Quando Estreia qua. (12) nos cinemas
Onde Nos cinemas
Classificação 14 anos
Elenco Glen Powell, Adria Arjona, Austin Amelio, Retta
Produção EUA, 2024
Direção Richard Linklater
PAULO SANTOS LIMA / Folhapress