SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Cresceu em sete vezes o número de pessoas que foram atendidas por dependência em apostas na rede pública desde 2020, segundo dados do SUS (Sistema Único de Saúde) de ambulatórios de todo o país analisados pela reportagem. O aumento entre mulheres é superior ao identificado entre homens.
Até julho de 2024, foram registrados 544 atendimentos, dos quais elas representaram 296, e eles, 248. O aumento é de 66% e 26%, respectivamente, se comparado com o ano anterior. Em relação a 2020, a alta foi de 1.010% entre mulheres e de 573% entre homens.
Profissionais da área enfrentam dificuldades, especialmente em centros especializados, devido à falta de recursos e infraestrutura adequados.
A reportagem pegou dados de aproximadamente 540 mil ambulatórios a partir da base do DataSUS e incluiu dois CIDs (códigos para classificação de doenças): o que considera o vício a própria patologia e o que coloca o vício em apostas como algo secundário, derivado de outro problema, como depressão, por exemplo. A pandemia pode ter represado notificações, mas mesmo assim, o padrão segue tendência de alta.
Dos registros, 95% são considerados casos patológicos. Dentre as pessoas que buscam tratamento, uma jovem de 22 anos, de Minas Gerais, relata ter comprometido o sustento da família com apostas antes de decidir procurar ajuda profissional.
Ela diz que não sabe o que a motivou entrar nisso, e que a sensação de ganhar nas primeiras vezes foi o que a impulsionou.
Depois do nascimento do filho, o jogo acabou se tornando uma forma de lidar com o que chama de vazio emocional. Cada dificuldade financeira a levava a apostar novamente, criando um ciclo de perdas e dívidas. Agora, ela planeja se tratar para superar o vício.
Outra mulher, de 43 anos, que trabalha com turismo na Bahia, também decidiu buscar tratamento. Ela começou a apostar em dezembro de 2022, influenciada por vídeos de pessoas ganhando dinheiro online.
Após enfrentar dificuldades emocionais e financeiras, ela relatou a dependência para sua família e foi em busca de tratamento. Diz que aceitar a ajuda de profissionais foi essencial e que sua família não a abandonou, mas que também sabe que não terá outra chance.
A psicóloga Mirella Martins de Castro Mariani, supervisora do Programa Ambulatorial do Jogo no Instituto de Psiquiatria da USP (Universidade de São Paulo), explica que jogos de resposta rápida, como o “tigrinho”, são preferidos por mulheres, enquanto os homens, especialmente jovens, se voltam mais para as apostas esportivas.
“Essa resposta imediata, associada ao prazer momentâneo e à repetição da atividade, pode desencadear um padrão compulsivo”, observa. Ela ressalta que a dependência em jogos ativa o sistema límbico, liberando dopamina, o chamado “hormônio do prazer”. Esse mecanismo, similar ao do vício em álcool e drogas, gera um ciclo compulsivo, que pode ser associado a fatores genéticos que aumentam a predisposição à dependência.
Um profissional de segurança de 35 anos compartilha uma experiência semelhante. Ele relata que começou a apostar em dezembro de 2023 na esperança de melhorar sua situação financeira. Percebeu a gravidade do problema quando se viu sem dinheiro para comer, com recursos esgotados tanto em casa quanto no trabalho.
Para evitar recaídas, buscou apoio em grupos online, como no WhatsApp, onde encontrou pessoas enfrentando desafios semelhantes. Além disso, bloqueou Pix, cartões de crédito e solicitou aos bancos que impedissem novos empréstimos em seu nome. Apesar dessas medidas, ele ainda não procurou ajuda profissional.
Mariani diz que homens são mais resistentes na busca por tratamento, e muitas vezes relutam em admitir o problema.
“Considerando que a população mais jovem e masculina tem sido a principal envolvida em apostas esportivas, seria esperado que mais homens adoecessem e, consequentemente, procurassem atendimento”, afirma.
A regulamentação das apostas online no Brasil, proposta pelo Ministério da Fazenda, proíbe o uso de crédito para apostas, permitindo apenas pagamentos com cartões de débito ou pré-pagos. O acesso a sites e aplicativos será restrito a maiores de idade, e a publicidade não poderá incentivar a ideia de enriquecimento rápido através das apostas.
Outros países, como Espanha e Reino Unido, criaram também sistemas de monitoramento do comportamento dos jogadores, e oferecem a possibilidade de bloqueios voluntários do acesso às plataformas com o objetivo de prevenir a dependência.
Apesar da crescente demanda, porém, programas de apoio seguem com vagas limitadas. É o caso do Proad (Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes), vinculado ao Departamento de Psiquiatria da Unifesp, segundo o psiquiatra Aderbal Castro, da Escola Paulista de Medicina da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
Ele ressalta que, embora São Paulo seja um centro psiquiátrico importante, existem poucos grupos especializados em dependência de jogos, além dos tratamentos estarem concentrados no Hospital das Clínicas e na Unifesp. A falta de recursos e infraestrutura, agravada pela pandemia, também dificulta a expansão desses serviços.
Mariani e Castro concordam que os Caps (Centros de Atenção Psicossocial) poderiam atender esse perfil de paciente, mas reforçam que os profissionais precisariam de capacitação específica para lidar com essa forma de dependência.
“A dependência em apostas online se tornou um problema de saúde pública que demanda maior suporte”, acrescenta Mariani.
Em nota, a Secretaria Municipal da Saúde declara que as 476 UBSs (Unidades Básicas de Saúde) funcionam como porta de entrada para a Rede de Atenção Psicossocial, que oferece acolhimento inicial na capital. A rede também conta com 103 Caps, que atendem crianças, adolescentes, adultos e pessoas com dependência de álcool, drogas e outros transtornos, sem necessidade de agendamento.
RAÍSSA BASÍLIO E DANIEL MARIANI / Folhapress