PORTO ALEGRE, RS (FOLHAPRESS) – No final de abril, Tocantins recebeu meninas de escolas de vários estados do Brasil, na disputa do Campeonato Brasileiro Escolar de Futebol Feminino, da CBDE (Confederação Brasileira do Desporto Escolar). Ivanete Xerente, 16, estava quase em casa.
Jogando no meio de campo, ela defendia o time do Colégio E. Guilherme Dourado, do município de Araguaína, a 384 quilômetros de Palmas e a 300 de Tocantínia, terra natal da jovem e onde ela começou a jogar bola, ainda criança, em chão batido, com trechos de lama e campina.
Indígena da etnia Xerente, Ivanete começou a gostar de futebol acompanhando o pai. Paulo César Wawekrurê Xerente, professor e cacique da aldeia Cachoeira, onde a família vive, chegou a sonhar em se tornar profissional, mas as dificuldades para manter contato com a família a longas distâncias, nos anos 1990, o fizeram ficar.
A filha tomou um caminho diferente. Com seu time em um quinto lugar histórico para as equipes de Tocantins no campeonato escolar, Ivanete chamou a atenção de uma captadora, com a proposta de um contrato para a base da Ferroviária SAF, em Araraquara, interior de São Paulo.
O contrato, válido por cinco anos, a colocou como uma das primeiras atletas indígenas a assinar profissionalmente com um clube de futebol feminino no país. A primeira na Ferroviária, segundo o clube.
“Futebol, para mim, é tudo hoje. Está presente em tudo na minha vida”, diz Xerente.
“Como pai, foi um momento único ver uma filha, como indígena, sendo uma das primeiras no Brasil, no futebol, a assinar um contrato. A ficha demorou para cair, para acreditar em tudo que ela estava vivendo”, conta o cacique Paulo César.
Desde maio no interior de São Paulo, a mais de 1.500 quilômetros de casa, a rotina da menina é ir à escola pela manhã, onde cursa o segundo ano do Ensino Médio, e aos treinos à tarde.
“O estudo está aliado ao esporte. A atleta só segue com a gente se continuar estudando, o que é exigência da Federação Paulista e da CBF [Confederação Brasileira de Futebol]. Eles solicitam os boletins das atletas, e a gente tem uma equipe multidisciplinar com responsáveis pela fiscalização do desempenho escolar”, explica Rafaela Esteves, coordenadora das categorias de formação do futebol feminino da Ferroviária.
Esteves conta que o clube justifica eventuais ausências junto à escola, mostra relatórios com súmulas dos jogos e faz acompanhamento, mantendo os pais que vivem longe a par do desempenho das filhas.
Pouco mais de um ano antes da ida para a Ferroviária, Xerente, como Ivanete é chamada, já tinha feito as malas pela primeira vez e trocado Tocantínia por Araguaína. Foi para o projeto 100 Limites, onde treinam as alunas do Colégio Estadual Guilherme Dourado. E o futebol passou a ser algo sério na sua vida.
O projeto começou com outro nome e voltado a atletas masculinos mas, depois da pandemia, o foco virou para o futebol feminino e atletas na categoria sub-18, conta Fraudneis Fiomare, um dos idealizadores. Foi assim que ele encontrou Ivanete.
Em Araguaína, a menina, lembra ele, conseguiu segurar a carga pesada de treinos e se destacou -tudo sem deixar a escola. O projeto já afastou uma atleta titular do time por não conciliar os dois.
“Esporte é transformação de vida. Cada uma delas twm uma história, no geral, muitas são muito humildes”, diz ele. “A gente tenta mostrar que o estudo é mais importante que a qualidade do futebol.”
Fraudneis foi secretário executivo de esportes e juventude do estado até fevereiro e conta com apoio do governo do estado no 100 Limites. O poder público ajuda em despesas de material e viagens, mas há ainda um gasto mensal de R$ 7.000 em alimentação que ele mesmo arca, quando não encontra patrocinadores.
“A gente disputa todas as competições com prêmios acima de R$ 5.000. O valor que ganhamos, dividimos a metade entre as jogadoras que foram campeãs e, com a outra parte, pagamos despesas. Só esse ano já conseguimos R$ 25 mil em sete competições”, calcula.
O pai de Ivanete, cacique Paulo César, acredita que o projeto foi um diferencial para que a filha encontrasse uma oportunidade, onde indígenas ainda são minoria rara.
“O que falta é oportunidade, grandes clubes garimparem mais no interior. O povo Xerente ama futebol, tanto que na comunidade temos seis campeonatos dentro de um ano. Termina numa região, já começa na outra. É muito forte o futebol amador aqui. Talento tem bastante, tem molecada boa de bola”, afirma.
Ele conta ainda que já viu a filha se tornar uma inspiração para crianças menores, que também sonham em ir mais longe no futebol e assistem aos vídeos de jogadas e gols dela.
“Tem muitos indígenas talentosos no futebol, que sonham em ser jogadores profissionais, como eu sonho. Eu me tornei uma inspiração para alguns, por chegar onde eu cheguei, porque é uma coisa nova”, avalia a jogadora.
“Aos poucos ela vai amadurecendo, crescendo, quem sabe até vestir a camisa da seleção brasileira”, torce o pai.
“Eu sinto que ela foi escolhida por Deus para levantar essa bandeira do futebol feminino e do futebol indígena. Se Deus quiser, é só o começo de muitos que vem aí”.
FERNANDA CANOFRE / Folhapress