Ator relata incêndio em apartamento de Zé Celso

SÃO PAULO, SP (UOL/FOLHAPRESS) – Na madrugada da última terça-feira (4), o ator Ricardo Bittencourt se deitou após uma conversa feliz com o amigo de longa data Zé Celso. Horas depois, acordou confuso, com a boca e a garganta preta, prestes a descobrir que o apartamento em que morava estava em chamas.

Bittencourt morava com Zé Celso, o viúvo, Marcelo Drummond, e o jovem ator Victor Rosa. Em entrevista ao UOL, ele descreve em detalhes uma rotina de trabalho, diversão e irmandade. Descreve também o incêndio, que chama de “tragédia horrorosa”, a última conversa e a última vez em que viu o amigo.

O INCÊNDIO

Ricardo conta que Zé Celso e ele costumavam dormir tarde, diferente de Marcelo e Victor, que são mais “disciplinados”. Na noite do dia 3 não foi diferente.

“A gente tinha essa coisa da madrugada, do jantar junto, comer junto, de conversar muito, a gente sempre conversou muito. E a gente era muito fofoqueiro também, a gente gostava de fofocar”, brinca.

Tomaram sorvete de cupuaçu, conversaram sobre Reinaldo Azevedo, sobre as “vidas privadas”, comemoraram a porta que Daniela Mercury e Gilberto Gil abriram para a publicação das obras dramatúrgicas de Zé e combinaram de cuidar da parte burocrática do projeto pela manhã. Uma conversa “feliz”.

Horas depois, porém, Ricardo acordou e enxergou o céu de São Paulo dentro de seu quarto.

“Naquela noite, era um frio especial. Eu fechei a janela [do quarto] praticamente toda, deixei só uma brechinha. Como é uma coisa inusitada, eu costumo deixar a janela um pouco mais aberta, eu acordei com essa lembrança”, conta.

“Não fazia sentido eu ver o céu de São Paulo dentro do meu quarto, onde se eu levantasse a mão, eu pegava. Começou a não fazer muita lógica, mas eu me levantei. Talvez eu já estivesse meio doido do tal monóxido de carbono”, disse Ricardo Bittencourt.

Caminhou pelo apartamento onde ficava seu quarto e o de Marcelo e percebeu que os cômodos estavam escuros, com fumaça. Chegando mais perto do apartamento de Zé, sentiu cheiro de queimado. Foi levado à infância, à ilha de Mar Grande, na Bahia, onde passava férias com a família.

“Os nativos tinham o hábito de fazer incineração a céu aberto, queimar lixo. […] Quando eu chego nessa saleta, que ela vai ficando um pouco mais escura, um pouco mais esfumaçada, o meu primeiro pensamento foi: ‘Não, eu não acredito que São Paulo regrediu a esse nível e que estão fazendo incineração a céu aberto'”, conta.

Até que atravessou os outros cômodos e encontrou Zé Celso e Victor em meio ao fogo.

“Eu vejo o Zé nu, muito queimado. E Victor parecia um bicho, tentando puxar o Zé. […] Eu olhei, o Zé me olhava, eu olhava ele, via ele machucado, mas não realizava”, descreve.

Nos momentos seguintes, dos quais se lembra com certa confusão, Ricardo fez menção de descer ao quinto andar, onde moram duas irmãs de Zé Celso, de 92 e 84 anos. No meio do caminho, encontrou Marcelo, aparentemente desmaiado na escada.

“Eu estava sem óculos, eu enxergo pouco, mas eu consegui ver que era uma coisa que eu nunca tinha visto. A gente se olhou profundamente, e ele fez um movimento muito de cabeça para mim. Tipo: ‘É, é verdade’. Aí começou a cair a ficha”, diz.

Entre uma correria nas escadas e um encontro desesperado com Lurdinha, cuidadora de uma das irmãs de Zé, Ricardo começou a recobrar a consciência. Foi quando viu que Zé já havia sido tirado do apartamento e estava no chão da área comum, perto da saída do elevador.

“Me deparei com o Zé deitado e Marcelo, os dois, numa posição de concha, segurando a mão um do outro, e Zé jogou a perna por cima de Marcelo”, descreve.

Quando Victor pediu um extintor, foi Marcelo quem levantou num impulso para ajudar o amigo. Ricardo, por sua vez, se jogou no chão ao lado de Zé.

“Zé me viu, me reconheceu, fez uma expressão inesquecível e pediu a mão. ‘Me dá a mão, mão, mão. Me dá a mão.’ Aí eu dei a mão a ele e ficamos nos olhando, talvez dois palmos, nos olhando profundamente, disse Ricardo Bittencourt.

“Aí eu vi que a mão dele estava muito machucada. Eu não sabia como segurá-la. Eu só dei a minha mão como suporte. E ele ficou assim, apertando, segurando a minha mão com firmeza”, completa.

Ricardo conta que, naquele momento, sentiu algo cair do teto. Logo pensou em seu filho e teve medo de morrer.

“Eu pensei: ‘Eu não posso morrer amassado aqui. Mas também não vou deixar ele aqui.’ Fiquei vivendo um momento de Sofia, profundamente dolorido, mas nesse momento, segurando a mão de Zé, no momento em que eu estou começando a tirar, chega de novo a Lurdinha com os bombeiros e me arrancam de lá”, conta.

Essa foi a última vez em que viu Zé Celso.

“MINHA VIDA FICA MENOR”, DIZ RICARDO

As horas e dias seguintes ao incêndio foram de confusão. Ele se lembra de momentos em que não sabia dizer onde estava, por exemplo. Conta que um dos bombeiros lhe mostrou que, apesar de aparentar estar bem por fora, sua boca, seus dentes e sua garganta estavam todos pretos pela inalação da fumaça.

Apesar de não se lembrar bem de todos os momentos, destaca -e pede que a reportagem destaque- o excelente atendimento que recebeu dos bombeiros, policiais e médicos que o atenderam.

“Viva o SUS, viva o SUS, viva o SUS. Precisamos, sim, de políticas que fortaleçam cada vez mais o Ministério da Saúde, que fortaleçam e expandam o SUS”, elogia.

Ainda sem saber qual foi a perda material causada pelo incêndio, conta que amigos do teatro se uniram para ajudá-lo no hospital: recebeu mochilas com roupas, itens de higiene, meias, cuecas, produtos para barbear e outras utilidades.

Conta também que está bem de saúde e que ele, Marcelo e Victor estão hospedados no mesmo apart-hotel. Eles ainda não podem voltar ao apartamento. O trio se reencontra, mas não está no mesmo quarto. Ricardo diz que socializa, mas agora “precisa de sua bolha”.

O ator tem um filho, mas ganhou mais um: Victor, a quem chama de super-herói.

“Eu tenho um filho na vida. Pronto, agora eu tenho dois. Era só o que me faltava. Ainda Zé me deixa essa herança”, brinca.

Apesar de falar do assunto com bom humor -“O Zé que há em mim está buscando o humor nessa tragicomédia-orgia, como ele falava”- Ricardo tem dificuldade para falar de Zé no passado, imaginar o seu legado. Diz que ainda está “acessando” a perda do amigo.

“Para mim, está difícil responder sobre o Zé monstro sagrado. Ainda está difícil. […] Mas a minha vida fica menor. Isso indiscutivelmente. A vida fica menos charmosa. Pode ter alegria, pode ter isso, mas a minha vida se apequena. Fica menor”, disse Ricardo Bittencourt.

LUIZA STEVANATTO / Folhapress

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