FOLHAPRESS – Eis um filme estranho. Em princípio, “O Aprendiz” existe para narrar a juventude de um trapaceiro, Donald Trump, e o aprendizado de todas as trapaças e imoralidades do mundo. Seu mestre é ninguém menos que Roy Cohn, advogado que ficou famoso como uma espécie de braço direito do senador Joseph McCarthy, líder do que ficou famoso, no pós-guerra, como a caça às bruxas.
Cohn não é um homem sem princípios. Ao menos um ele tem: o mundo é um lugar hostil, no qual é preciso lutar com todas as armas disponíveis, do ataque incessante à mentira idem. Em suma, a única coisa importante é vencer, não importa por que meios.
O fato é que o jovem Trump precisa livrar a empresa do pai de uns tantos processos movidos pelo governo. Cohn, que detesta a palavra Estado e a proteção aos pobres implícita nessa palavra, assume a causa e, ao mesmo tempo, adota Donald como aprendiz. Ganha o processo usando de chantagem contra o governo, os juízes ou quem fosse necessário dobrar.
Os liberais ou comunistas, como os chama Cohn podem se dobrar de ódio, mas esse é o código moral de Cohn, Trump e seguidores. Essa biografia é feita, de certa maneira, como denúncia do modo de agir da extrema-direita, nos Estados Unidos e no resto do mundo.
No entanto, um problema se coloca: a tudo o que Trump e Cohn fazem não falta eficácia. Os fins, normalmente egoístas, justificam os meios, aliás normalmente sórdidos.
Então lança-se a dúvida: se os métodos de Trump foram avalizados ao menos por uma grande força política, o Partido Republicano, se mal ou bem tudo deu certo, por que outras extremas-direitas igualmente racistas e autodenominadas libertárias não deveriam tomá-los por exemplo?
Então, essa advertência quanto a certo tipo de comportamento, na vida pública ou na pessoal, pode muito bem tornar-se uma espécie de elogio de um vale tudo que se esconderia sob a palavra liberdade, o que seria aparentemente o inverso do pretendido por Ali Abbadi, diretor do filme, e sua equipe.
Dito isso, essa biografia vale essencialmente pela interpretação de seus dois atores principais. É certo que a maquiagem deve ter ajudado muito na composição de Sebastian Stan como o jovem Trump, mas habitualmente essas biografias que buscam imitar perfeitamente os traços do biografado são insuportáveis.
No caso, não é a semelhança o que mais conta, mas a maneira como Stan se apropria de certos gestos e inflexões características de Trump, que ressaltam a ambição desmedida, o enriquecimento como fim moral desejável e o egoísmo.
O filme explora bem dois aspectos contrastantes: o irmão, desprezado pelo pai porque é um simples piloto de avião (ele chega a chamá-lo de algo como chofer de ônibus voador), e o próprio pai tirano, com quem Donald manterá sempre uma relação de amor e ódio é ele, afinal, o filho que fez aquilo que o pai sonhou fazer. O pai se orgulha de um filho que o despreza.
Já Jeremy Strong cria um Roy Cohn notável, em que o essencial não é tanto a aparência física, como a maneira implacável que, por olhares, palavras e gestos, faz de Trump um aprendiz exemplar de seus métodos implacáveis. Mais tarde, essa gesticulação e esse olhar se transformarão bastante, quando, em dado momento, descobrir que Trump é capaz de traí-lo sem qualquer dor de consciência, ou seja, seguindo à risca seus ensinamentos.
O interesse de “O Aprendiz” se restringe, é preciso observar, aos ensinamentos que a trajetória de Trump pode trazer, seja a seus admiradores da extrema-direita, seja aos seus adversários. Para quem for atrás de prazeres cinematográficos, os atores são o essencial da diversão, num conjunto prejudicado pelo fato de os métodos de Trump já serem bem conhecidos.
Ainda assim, dado o enorme peso que tem esse tipo de pensamento não só na política como no cotidiano, ninguém dirá que se trata de um filme sem sintonia com o presente.
O Aprendiz
Avaliação Bom
Quando Estreia na quinta-feira (17) nos cinemas
Elenco Sebastian Stan, Jeremy Strong, Maria Bakalova
Produção Estados Unidos, 2024
Direção Ali Abbasi
INÁCIO ARAUJO / Folhapress