FOLHAPRESS – Os filmes de Hong Sang-soo mostram habitualmente pequenas transformações que se desenvolvem ao longo de conversas e encontros, às vezes casuais, às vezes não. Constituem pequenas, rigorosas e no geral bem-humoradas peças de câmara. Isso se repete em “Através do Fluxo”, em cartaz na Mostra de Cinema de São Paulo, mas certas mudanças se manifestam com força.
A trama, ou o fluxo de tramas, começa quando Jeonin papel de Kim Min-hee, premiada em Locarno por esse papel, professora em uma faculdade, convida seu tio Kwon Hae-hyo, escritor famoso, porém com a carreira em crise, para dirigir uma pequena peça teatral com alguns alunos. Por que o convite? Porque o aluno que dirigia a peça namorou três das suas atrizes e acabou deixando a escola.
Existe uma espécie de mal-estar que percorre tudo e que começa aí. Mas não termina. Primeiro, porque a entrada no campus atualmente encontra-se severamente vigiada e, ao que parece, o possível retorno do aluno namorador é o motivo disso acontecer. Segundo, Jeonin tornou-se professora graças à proteção de outra influente professora, a quem ela leva o escritor para conhecer. Ocorre que Jeong Cho Young, a professora, é uma enorme fã do escritor, a quem considera uma espécie de monumento nacional.
Uma pequena sombra (outra) surge no filme: terá Jeonin chegado ao posto de professora por seu valor ou Jeong interfere a seu favor devido à enorme admiração pelo tio?
Como se vê, estamos num fluxo, ou numa corrente em que um acontecimento desencadeia outro. Nenhum tem importância transcendental: é como o correr da vida, com alegrias e contrariedades que, aliás, se estampam nas expressões do escritor mais do que em qualquer outro personagem do filme.
As tramas se entrelaçam, uma leva a outra. Isso é o mais frequente nos filmes de Hong. Desta vez são algumas pontas soltas que chamam a atenção e permanecem na memória do espectador. Exemplo: num dado momento, uma das quatro atrizes da peça desaparece. Todos procuram por ela no campus. A encontram, tempos depois, na companhia do ex-aluno o trânsfuga. Estabelece-se uma conversa entre Jeonin e as moças. O tio se afasta e, quase desaparecido da cena, chama o estudante para uma conversa. O rapaz vai.
E daí? Daí, nada. Não saberemos o que falaram, sobre qual assunto, nada. E nada mais será dito a respeito.
Em outro momento, depois que a montagem teatral do escritor é bem mal recebida, Jeong será chamada pelo presidente da universidade para uma conversa. Não parece boa coisa, devido ao envolvimento dela com o escritor, que já adivinhamos existir e motivo de dúvida para Jeonin. Logo depois, a própria Jeonin é chamada pelo presidente para participar da conversa. O que soa ainda mais perigoso, pois foi ela quem chamou o tio para se ocupar da montagem.
No entanto, após alguns momentos, as duas saem da reunião e sabemos que nada do que se poderia temer aconteceu, ninguém foi demitido, e se houve alguma advertência foi ligeira.
Esses pequenos eventos, essas pontas soltas que interrompem o correr do roteiro, lembram bem o rio que passa em frente à faculdade: num trecho o vemos caudaloso, mas logo depois se interrompe, seca, estanca. Assim, essas pontas soltas servem para introduzir a vida ali onde está um roteiro, funcionam como um refluxo na narrativa ou até mesmo como uma provocação aos textos onde todas as pontas estão amarradas.
O filme, se observarmos com atenção, é todo composto por pontas soltas, por esses incidentes que compõem, afinal, a existência dos personagens. É na capacidade de produzir e absorver esses vazios de narrativa, de fazer deles a sua poesia, que está, em “Através do Fluxo”, o essencial da arte de Hong Sang-soo.
ATRAVÉS DO FLUXO
– Quando Mostra de SP: dom. (20), às 17h10, no Sato Cinema; qui. (24), às 14h, no Espaço Augusta; sáb. (26), às 19h, no Cinesystem Frei Caneca; qua. (30), às 20h15, no IMS Paulista
– Classificação 14 anos
– Elenco Kim Min-hee, Kwon Hae-hyo, Cho Yun-hee
– Produção Coreia do Sul, 2024
– Direção Hong Sang-soo
INÁCIO ARAUJO / Folhapress