Autobiografia é a literatura mais coletiva, diz Édouard Louis, estrela da Flip

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A frase “burgueses não sentem raiva” é uma das mais marcantes da obra do escritor francês Édouard Louis, um dos grandes nomes desta edição da Flip.

Édouard obteve grande reconhecimento já em seu livro de estreia, “O Fim de Eddy” (Tusquets), em que trata de sua família pobre, ignorante, homofóbica e de extrema direita, oriunda de uma vila operária no norte da França. Expor suas memórias da infância e da adolescência fez com que seu irmão fosse até a porta de sua casa com um taco de beisebol e sua mãe aparecesse em programas de televisão desdizendo os relatos do filho.

“História da Violência”, lançado aqui também pela Tusquets, aborda um estupro vivido pelo escritor. Seus livros seguintes, publicados no Brasil pela editora Todavia, são a dobradinha “Quem Matou Meu Pai” e “Lutas e Metamorfoses de uma Mulher”, ambos tentativas corajosas e profundas de entender e até perdoar a violência familiar.

Já “Mudar: Método” é um relato minucioso e bem explícito de toda a sujeição imposta a um trânsfugo de classe, e o recém-lançado “Monique se Liberta”, sobre o momento em que sua mãe enfim abandona o terceiro marido abusivo, e Louis, agora escritor bem-sucedido, pode ajudá-la financeiramente.

Mal começa a nossa entrevista pelo Zoom e, com o mote “burgueses não sentem raiva” ainda ecoando, tenho vontade de perguntar ao autor se ele está livre do sentimento dito tão baixo por seres abençoados pela luz da bondade, da generosidade e do autoconhecimento (mais burguesia do que isso, impossível).

Quero saber se ele se libertou das garras malignas da revolta e da vingança. Mas temo que ele responda que está, sim, totalmente livre dessa mesquinhez, o que acabaria com a minha devoção ao seu trabalho e, ato contínuo, com o prazer em entrevistá-lo. Deixo a questão para o final.

Decido iniciar perguntando sua opinião sobre o termo “autossociobiografia”, que remete de imediato a Annie Ernaux. Édouard diz que considera os próprios textos autobiográficos e não vê necessidade de usar a palavra “social” como desculpa para parecer menos narcisista. “É claro que a fronteira entre a própria individualidade e a sociedade é uma ilusão, mas quem escreve sobre si mesmo sempre suspeita de que está fazendo alguma coisa de errado.”

Com uma literatura que contempla, nas palavras do autor, os “desgraçados da sociedade”, Louis diz que, embora seu sofrimento não se compare ao dos judeus no Holocausto, se identifica com uma frase célebre de Primo Levi —as pessoas não dão seu testemunho porque sobreviveram, mas sobrevivem para poder testemunhar.

Ao falar como filho da classe operária, Édouard acredita que seu “eu” convoca o de outros oprimidos: mulheres, pretos, gays, pobres. Ele se recusa, porém, a pedir desculpas por escrever em primeira pessoa.

“Quando eu tinha dez anos e cuspiam na minha cara, me chamando de ‘bichinha’, de ‘aberração’, eu só conseguia pensar que um dia contaria minha história e que essa seria a minha maior vingança contra a violência. A partir daí, desenvolvi uma obsessão por contar histórias”.

Ainda que, para ele, “muitas pessoas do campo conservador hoje digam que ‘todo mundo está escrevendo sobre si mesmo’”, o que vem sendo premiado são sobretudo as obras de ficção. “Essa postura de medo e paranoia de textos autobiográficos me faz lembrar das pessoas racistas do vilarejo em que eu cresci. Não tinha nenhum negro ali, mas eles os viam em todos os lugares.”

Escrever sobre o próprio sofrimento tem um grande poder de “desvelamento das violências do mundo” e convoca as pessoas a acreditarem que suas histórias e suas dores são dignas de ser narradas. “A autobiografia é a forma mais coletiva de literatura”, conclui.

Quando pergunto sobre a angústia e a culpa que artistas que ascenderam socialmente relatam sentir, ele fala sobre melancolia e, acima de tudo, sobre um estranhamento por seguir em frente com a mesma tristeza de antes –aquela que ele acreditou que o abandonaria quando conseguisse ter a vida que tem hoje.

“‘Mudar: Método’ é um livro sobre a melancolia que sinto por não pertencer mais ao lugar de onde vim nem me sentir pertencente ao lugar aonde cheguei. E também sobre as violências e distorções que precisei praticar com meu corpo para me manter nesse lugar: mudar meu jeito de falar, de comer, de andar, de pensar”.

Em “Mudar: Método”, Édouard conta que, por algum tempo, buscou na riqueza a sua salvação. “Quando eu era criança, não tinha acesso a livros em casa, ou a cinemas e teatros nos fins de semana. Tudo o que desejávamos, então, era o dinheiro, era a sala kitsch do Trump aparecendo em nossa televisão. A cultura pode ser mais violenta que o dinheiro. Todo mundo fala da cultura e da literatura como algo que cria pontes, abre a cabeça, mas a cultura pode ser um fator de enorme violência de classe, uma parede.”

Pergunto a Édouard, hoje um homem branco de sucesso, se ele já teve de lidar com críticas de quem o acusa de vitimização. Ele se exalta: “Se você é da burguesia, você é poético; se você vem da classe operária, é um reclamão. ‘Vitimização’, ‘coitadismo’ são palavras vazias, que na verdade querem dizer para você calar a boca”.

Insisto no tema da culpa, e ele conta uma passagem dolorosa vivida na vila operária onde cresceu. Lá havia um único homem que pôde estudar e se formou médico. Quando esse homem aparecia em sua casa, todos se sentiam rebaixados pela maneira como falavam, se portavam e se vestiam diante dele.

“Hoje me tornei esse corpo que um dia já me humilhou, e me percebo, algumas vezes, fazendo o mesmo com a minha mãe. Mas ter sido humilhado, cuspido, me salvou, me fez ter forças para escapar.”

A literatura de Édouard, contudo, não poderia estar mais distante da clássica trajetória do herói. O personagem outsider que venceu na vida pouco lhe interessa: o que ele quer com seus textos é desafiar esse lugar-comum. Vem daí a coragem para narrar o período em que se prostituiu em Paris ou até mesmo para admitir que nem sonhava em ser escritor, só queria mesmo era escapar de onde estava.

“Com 15 anos fiz parte de um grupo de caligrafia, depois de quadrinhos, de teatro, de xadrez, mas eu não era bom em nada disso. Um dia, aos 17 anos, vi uma palestra de Didier Eribon [escritor francês que é seu mentor e melhor amigo desde então] em que ele contava como tinha escapado da miséria escrevendo justamente sobre o seu passado miserável [em “Retorno a Reims”, da Âyiné].”

“Aí eu pensei: essa é a minha saída. Comecei a ler compulsivamente, comprei tudo o que minhas economias permitiram: Jacques Derrida, Judith Butler, Marguerite Duras, Pierre Bourdieu, Hannah Arendt. No começo eu não entendia uma linha sequer do que estava lendo e me sentia burro. Mas eu tinha que sobreviver, então acabava voltando para os livros.”

Encaminho para o livro “História da Violência”, um dos meus preferidos. Nele, Louis vai até uma delegacia reportar o estupro que sofreu e percebe que os policiais estão sendo racistas com seu agressor. Édouard então decide não seguir adiante com a denúncia, mas um dos guardas o impede de ir embora: “Essa história não é mais sua”. Pergunto se ter suas narrativas roubadas e a serviço de outros interesses o preocupa, e ele responde que é uma preocupação diária.

“Quando comecei a escrever “História da Violência”, fiquei com medo de que o leitor fizesse a mesma coisa que o guarda e entendesse que eu sofri um estupro porque pessoas ‘não brancas’ são perigosas. Cheguei a pensar que deveria mentir e dizer que fui abusado por um homem branco, para que ninguém usasse minha história com propósitos racistas”, diz.

“Mas decidi contar a verdade e tentar desfazer esse racismo através da literatura, deixando claro que convivi com muitos homens brancos da minha família que cometerem violências contra mulheres.”

Tento entender de onde vem seu longo exercício de entender e perdoar a todos, que não me parece ser apenas sociológico. Édouard diz que não tem nada a ver com amor. “A questão não é sobre se essas pessoas merecem ou não ser compreendidas e perdoadas. Para mim, isso não se dá no campo da meritocracia –esse é um discurso capitalista. Eu só busco entender por que isso interessa à minha literatura.”

“Meus livros estão sempre cavando, cavando, dentro de um mesmo tema”, reflete, argumentando que certa repetição em seu trabalho é intencional. “Por outro lado, escrevi um livro sobre minha infância, outro sobre minha mãe, outro sobre meu pai, outro sobre estupro… Por mais que eu tenha escrito livros que de certa forma são diferentes, os burgueses vão sempre achar que estou falando da mesma coisa, assim como perguntaram para a Toni Morrison se ela iria escrever só sobre pessoas pretas.”

“Cavar” é o que Louis faz em “Quem Matou Meu Pai” para entender o que levou um filho de comunistas a se tornar um eleitor de Marine Le Pen. “A classe trabalhadora, tal como a minha família, foi abandonada pela esquerda. Por isso, muitos deles migraram cada vez mais para a extrema direita. Na vila onde eu nasci, 60% das pessoas são de extrema direita, todos eleitores de Marine Le Pen. Mas será que eles são individualmente culpados por isso?”, pondera.

Para Édouard, a literatura é uma tentativa de dar a essas pessoas outra forma de se expressar no mundo. “Elas querem contar que estão sofrendo e precisam de um escape. Alguns escapam por meio da bebida, outros apenas morrem, vários nem sequer percebem que existem. E que linguagem nós podemos oferecer para eles possam falar? A literatura é mais poderosa que a política.”

“Estou há anos tentando explicar para a minha mãe que a vida dela não foi ruim por causa dos imigrantes, do feminismo ou dos gays, mas porque ela sofreu com a opressão de classe e com a dominação masculina. A literatura, para mim, é um contra-ataque.”

Sobre vingança, palavra que aparece obsessivamente em todos os seus livros, pergunto se ele sente uma espécie de evolução para outro tipo de desejo, aquele sobre o qual Annie Ernaux falou em seu discurso ao ganhar o Nobel: o de vingar a própria raça. Édouard diz que sim, hoje escreve para compreender quem foi abusivo com ele, mas também para vingar essas pessoas. “Se o escritor não perdoar os outros no final de seus livros, não é literatura.”

Como a conversa se aproxima do fim, pergunto enfim sobre a raiva. Respiro fundo. Não me decepcione, Édouard. Ele responde sem hesitar: “Muita, muita. Eu sinto muita raiva! Meu irmão morreu aos 38 anos. Meu pai não consegue andar desde os 50 anos. Todos sempre viveram mal, se alimentaram mal, foram explorados. Daí vejo essa burguesia nas ruas de Paris e sinto muita raiva”.

“E de você?”, pergunto. “Sente raiva de si mesmo quando falha em imitar os burgueses, descobrindo-se aquele garoto camponês, um membro da classe trabalhadora?”

“Ninguém nunca teve coragem de me perguntar isso, mas sim. Sinto raiva de mim mesmo quando vejo os traços desse passado em mim. Isso nunca desaparece. Não muito tempo atrás, estava em um restaurante com amigos e, num momento de empolgação, falei alto e ri exageradamente, até que meus amigos me disseram: ‘Faça menos barulho!’. Esse é o problema da violência social: você a comete contra si mesmo. Eu me insulto, me maltrato. Isso é muito profundo… Esse sentimento de nunca pertencer.”

Por fim, questiono se, a despeito dos estudos, da literatura, das amizades, da erudição e do sucesso, foi o fato de ser gay, afinal, o que o salvou de tudo. Ele dá uma gargalhada deliciosa e conclui: “Completamente, absolutamente, totalmente, irreversivelmente!”.

ÉDOUARD LOUIS NA FLIP 2024

– Quando Sábado (12), às 19h

– Onde Auditório da Matriz, Paraty – RJ

TATI BERNARDI / Folhapress

COMPARTILHAR:

Participe do grupo e receba as principais notícias de Campinas e região na palma da sua mão.

Ao entrar você está ciente e de acordo com os termos de uso e privacidade do WhatsApp.

NOTÍCIAS RELACIONADAS