Ave Sangria celebra 50 anos de clássico que aborreceu a ditadura com show em SP

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Há 50 anos, a banda pernambucana Ave Sangria lançou seu primeiro álbum, autointitulado. Embebido numa lisergia artesanal, influenciado por Beatles e o Maio de 1968 e entremeado na herança cultural nordestina, o disco encapsulou a curta e intensa primeira encarnação do grupo, que acabou implodido após problemas com a ditadura militar.

Mas para o vocalista Marco Polo Guimarães, o álbum soa comportado perto do que a banda era no começo dos anos 1970. “Não ficou tão sujo como fazíamos no palco, como a gente queria. Ficou uma coisa burilada demais para o nosso gosto. A gente queria algo mais selvagem.”

O Ave Sangria, que neste sábado (17) volta a se apresentar em São Paulo, na Casa Natura Musical, hoje vive uma espécie de renascimento. Há cerca de dez anos, graças à internet, o disco de 1974 foi redescoberto por uma juventude interessada por clássicos esquecidos da psicodelia brasileira, e provocou o retorno da banda.

Eles voltaram aos palcos de shows e festivais, gravaram um segundo álbum -“Vendavais”, de 2019- e já preparam um terceiro. De certa forma, tentam recuperar o tempo que perderam a partir de 1975, quando a banda foi desfeita após ser censurada.

Quando “Ave Sangria” foi lançado, o grupo começou a despontar nas rádios com uma canção bem-humorada -uma espécie de samba levado numa guitarra saturada em que o eu lírico se declara a um dono de botequim.

“Seu Waldir” foi escrita por Marco Polo para ser interpretada por Marília Pêra numa peça, anos antes, quando em suas andanças, bem no estilo beatnik, passou pelo Rio de Janeiro. Na voz dele, e na visão da mulher de um militar importante do Recife, era uma música homossexual -e, portanto, deveria ser proibida.

O disco “Ave Sangria” foi retirado das lojas e teve a faixa “Seu Waldir” riscada, literalmente, com um prego, antes de voltar a ser vendido -não sem deixar um carimbo de subversivo que acabou por destruir o grupo. Em vinil, a obra se tornou uma raridade, que hoje coloca a banda no panteão das pérolas engolidas pelo tempo do rock brasileiro.

O Ave Sangria fez “Vendavais” como uma continuidade dessa história interrompida. “É como se não fosse um disco feito 45 anos depois, mas no ano seguinte -como se não tivesse havido aquela interrupção”, diz Marco Polo.

Ele se juntou a Almir de Oliveira, outro compositor e líder do Ave Sangria, e a Paulo Rafael, guitarrista, para lembrar o repertório não gravado da época. Por ter tocado em bandas de baile no fim dos anos 1960, mais de cinco horas por noite, sem repetir música, Almir desenvolveu uma memória musical fundamental nesse processo.

“Eu e Ivinho éramos os computadores da banda, ele diz, falando de Ivson Wanderley, outro guitarrista do Ave Sangria nos anos 1970. “Mas acredito que foi muito da convivência também. De 1972 a 1974, a gente vivia grudado. Era de manhã, de tarde e de noite tocando essas músicas.”

Foi o período em que se estabeleceu o mito do Ave Sangria. Contemporâneos de Novos Baianos e Secos e Molhados, eles viviam e viajavam com agregados quase como uma comunidade hippie, usavam batom e roupas extravagantes e chegaram a se beijar no palco -eram chamados de “Rolling Stones do Nordeste”. Isso fora a sonoridade roqueira suja e psicodélica, a poesia surrealista de Marco Polo com tiradas veladas contra a ditadura militar e as levadas de baião, maracatu e ritmos locais.

Era um momento em que o Recife vivia sua psicodelia chamada de udigrudi, abrasileiramento do termo underground, de onde emergiram Zé Ramalho, Lula Côrtes, Lailson de Holanda, Zé Flauta, Marconi Notaro, Flaviola e o Bando do Sol e Tiago Araripe, entre outros músicos. O Ave Sangria antes se chamava Tamarineira Village, referência ao bairro periférico de onde vinham os integrantes da banda, e onde ficava um famoso hospício.

O primeiro show da banda foi num festival universitário de música experimental na cidade cenográfica em Nova Jerusalém, onde se encena a Paixão de Cristo. Reza a lenda que alguém jogou pedrinhas de LSD na única água disponível para ser bebida pelo público de cerca de 2.000 pessoas.

“Quando olhei a grama, vi um verde da porra”, disse Marco Polo à reportagem sobre o evento conhecido como o “Woodstock pé-de-breque”. “Percebi que estava viajando. Já tinha fumado, bebido, estava muito doido. Mas teve gente que ficou de bobeira lá.”

Todo esse clima se refletia na arte do Ave Sangria, uma obra de contracultura talvez desafiadora demais para os padrões da época. Contratados pela Continental, eles gravaram o álbum de 1974 às pressas, no Rio, com uma produção, diz Marco Polo, simpática mas que não os entendia.

O produtor foi Márcio Vip Antonucci, que tinha um passado na Jovem Guarda, e acabou tolhendo a banda -domesticou as guitarras, encurtou as músicas e atrapalhou as mudanças de andamento fundamentais para a sonoridade do grupo, que ia do rock ao forró e voltava numa mesma canção. Ainda assim, “Ave Sangria” tem um teclado Moog à frente do seu tempo em “Dois Navegantes” e canções ácidas como “Geórgia, a Carniceira”.

Entre idas e vindas de outros integrantes, o Ave Sangria nessa época era formado por Marco, Almir, Paulo e Ivinho, além do baterista Israel Semente Proibida e o percussionista Agrício Noya. Com exceção dos dois compositores, os remanescentes da banda, todos eles tocaram brevemente com um iniciante Alceu Valença, mas só os guitarristas tiveram carreira na música pós-Ave Sangria.

Paulo Rafael, que morreu em 2021, fez história na música brasileira após décadas tocando guitarra e sendo fiel escudeiro de Valença. Já Ivinho, um talento da guitarra roqueira brasileira, chegou a gravar um álbum ao vivo no prestigiado Festival de Jazz de Montreux, mas passou o fim da vida vendendo instrumentos e vagando pelas ruas do Recife, até morrer em 2015.

Ele ainda participou de shows de reunião da banda em 2014. “Tinha momentos em que estava totalmente lúcido, inteiro, e outros que ele estava num delírio”, diz Marco Polo. “Acho que foi excesso de algumas drogas. Na época da banda, ele era o mais careta, não bebia nem fumava nada. Depois que entrou, foi de cabeça.”

Já Paulo Rafael foi determinante nos últimos anos do Ave Sangria, inclusive sendo fundamental em “Vendavais”. “Foi uma perda chocante, ninguém esperava”, diz Marco Polo. “Mesmo com a dimensão que tinha na música, era generoso. Briguei com todos da banda, menos com ele. No Ave Sangria, ele se sentia parte, participava com gosto.”

Marco, Almir e Paulinho recordaram 20 músicas feitas nos anos 1970 para o disco de 2019, sendo que 11 foram gravadas. Eles agora preparam um terceiro álbum da banda, ainda em fase de criação, que une algumas dessas canções da primeira encarnação com outras novas, escritas no momento atual.

Há parcerias que Marco Polo fez durante a pandemia com Chico César (um xote), Lenine (um maracatu), Zeca Baleiro (uma ciranda) e Silvério Pessoa (um rock). Se “Vendavais”, lançado sob o governo de Jair Bolsonaro -um “mequetrefe inominal”, nas palavras do vocalista-, tem músicas feitas sob a força anti-autoridade militar que marcou o primeiro momento da banda, o próximo trabalho será mais descontraído.

“Acho que ele vai ser mais lúdico, mais de curtição e entretenimento”, ele diz. É uma permissão para ser feliz que a própria banda pode ter agora, 50 anos depois. “Antes a gente queria curtir, mas também ficava cutucando a consciência das pessoas. Agora, não estamos mais tão assim. Acho que vem também da idade, você começa a olhar o mundo com mais serenidade.”

AVE SANGRIA EM SÃO PAULO

Quando Sábado (17), às 21h

Onde Casa Natura Musical – R. Artur de Azevedo, 2.134, Pinheiros

Preço de R$ 40 a R$ 200

Classificação 18 anos

LUCAS BRÊDA / Folhapress

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