Bactérias fabricavam ‘bússola’ com ferro há quase 2 bilhões de anos para se orientar no ambiente

SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – Bactérias que viveram há quase 2 bilhões de anos provavelmente já usavam minerais para fabricar suas próprias “bússolas” microscópicas, que as ajudavam a se orientar pelo campo magnético da Terra. A conclusão vem de uma análise conduzida por pesquisadores brasileiros e europeus e traz implicações intrigantes para a compreensão da trajetória evolutiva da vida no planeta –e até fora dele.

“Hoje, esse tipo de bactéria utiliza o magnetismo -ela ‘sente’ a influência do campo magnético terrestre e pode realizar um torque, ou seja, a célula pode rotacionar na direção do campo”, explica o geofísico Ualisson Donardelli Bellon, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP. Ele é o primeiro autor de um novo estudo sobre o tema publicado na última terça (28) na revista científica americana PNAS.

As bactérias dotadas dessa capacidade conseguem capturar ferro dissolvido no meio líquido onde vivem e produzir, a partir dele, cristais de minerais como a magnetita, com propriedades magnéticas naturais. Montando cadeias desses cristais, os micróbios as usam para guiar sua movimentação, tal como outras bactérias são capazes de detectar e seguir compostos químicos presentes no ambiente.

Os estudos que abordam a árvore genealógica evolutiva desse tipo de micróbio já estimavam que se trata de uma estratégia de “navegação” muito antiga, talvez remontando aos primórdios da vida bacteriana. Evidências mais diretas dessa história profunda, porém, são bem mais recentes, em parte pelo fato de que células microbianas não se preservam com a mesma facilidade que ossos ou outras estruturas de seres vivos de grande porte, é claro.

“Nos processos geológicos, os minerais magnéticos crescem nas rochas -por exemplo, quando o magma [material derretido presente em vulcões e outros contextos] vai se resfriando. De maneira geral, eles são bastante heterogêneos. O que é muito interessante é que essas bactérias geram grãos de material magnético muito perfeitos estruturalmente, com uma simetria e uma pureza muito alta”, conta o pesquisador.

É por isso que, mesmo sem a preservação da célula bacteriana propriamente dita, é possível inferir a presença desse tipo de micróbio “com bússola embutida” caso a geometria dos cristais magnéticos e sua pureza química seja detectada.

“Nas rochas, a gente tem uma assinatura magnética que essas partículas geram, por elas estarem numa cadeia. A partir do momento em que a gente encontra essa assinatura, começa a trabalhar com microscopia e tomografia para tentar encontrar evidências de que essas cadeias estão lá”, explica Bellon.

Um desses possíveis conjuntos de bússolas bacterianas tinha sido identificado por Douglas Galante, também da USP, e Lara Maldanis, da Universidade Livre de Amsterdã (Holanda) -ambos coautores do novo estudo- num trabalho anterior, de 2020. Havia até a presença de filamentos formados por matéria orgânica alterada por processos geológicos, com os grãos magnéticos no meio. Os possíveis restos bacterianos estavam em rochas de 1,88 bilhão de anos da chamada formação Gunflint, que fica entre os Estados Unidos e o Canadá.

Mas havia um detalhe importante. Os cristais identificados na formação Gunflint eram classificados como magnetofósseis gigantes, porque seu tamanho, na escala dos micrômetros (milionésimos de metro), era centenas de vezes maior que os das “bússolas” das bactérias atuais. Com isso, não era possível saber se teriam a mesma função há quase 2 bilhões de anos.

Foi essa dúvida que a nova pesquisa resolveu ao produzir modelos quantitativamente precisos sobre como os cristais magnéticos grandalhões, com formato de cubos, poderiam se comportar quando estivessem alinhados. O veredicto: a função de bússola continuaria valendo nesses casos.

“Os magnetofósseis trazem informações muito importantes a respeito da química dos oceanos nessa época, e eles aparecem também em momentos, por exemplo, em que a gente tem grandes pulsos de oxigenação no planeta”, diz Bellon. Estudar as estruturas, portanto, traz mais pistas sobre processos geológicos e biológicos de larga escala.

Há algumas implicações, porém, que vão além da superfície terrestre ou das profundezas dos oceanos. Os métodos não invasivos usados para analisar os magnetofósseis, que não implicam em destruir as amostras de rocha, também serviriam para investigar a possível presença de vida microbiana antiga em amostras de Marte ou de outros planetas rochosos, por exemplo.

“A gente ainda não sabe se houve vida em Marte em algum momento, mas a metodologia que a gente usa nesse trabalho pode ser estendida para amostras vindos de fora da Terra em algum momento, sejam marcianas ou mesmo de meteoritos.”

REINALDO JOSÉ LOPES / Folhapress

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