SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Thiago Soares, de 43 anos, quer contar a sua história. Para tanto, ele prescinde da palavra ao imergir na linguagem da dança. O que se impõe é o trabalho com o corpo, meio de expressão pelo qual ele compartilha com os mais jovens a carreira vitoriosa no balé, que se iniciou nas aulas de breakdance, agora um esporte incluído nas Olimpíadas de Paris. “É mais visibilidade para a dança”, diz ele. “É uma modalidade para artistas e atletas de excelência.”
Por 14 anos primeiro bailarino do Royal Ballet de Londres, Soares alcançou um dos postos mais importantes do balé no mundo. Durante todo esse tempo, teve de renunciar aos prazeres cotidianos, com uma rotina de treinos e ensaios, e devotou a sua vida ao sacerdócio da beleza. “Perdi sobretudo histórias, o tempo passa, as pessoas mudam e me tornei estranho à minha própria história”, afirma. “Mas hoje eu lido bem com isso, encontrei um equilíbrio.”
Entre a dor e o sucesso, Soares põe sua vida em cena com o espetáculo “Último Ato”, que estreia nesta sexta (2) no Teatro Unimed. Criada há dois anos, a coreografia foi idealizada pelo bailarino, que divide o palco com Gabriela Sisto, Gab Ribeiro e Tairine Barbosa.
Já no início, a plateia é convidada a ser participante da narrativa autobiográfica a ser desvelada. Depois de uma fala de boas-vindas, o artista se vira contra a multidão e presta agradecimentos a um outro teatro, semelhante ao que se apresentava na capital da Inglaterra, reproduzido em um imenso telão.
A sequência é formada por uma mixórdia de estilos de dança, que começa no clássico, flerta com coreografias de origens hispânicas e alcança o contemporâneo. É notável, contudo, a permanência do balé, mesmo quando Soares executa movimentos mais modernos. As regras e os códigos que respeitou durante a carreira são um sotaque na prática de “Último Ato”, a começar pela postura adotada pelo bailarino e a esse apego por desenvolver uma narrativa.
Tanto que Soares define o espetáculo como uma peça teatral dançada, uma influência da tradição do “Tanztheater”, que encontrou sua forma mais bem acabada com a coreógrafa e bailarina alemã Pina Bausch. “Último Ato” culmina com a inserção da cultura brasileira, em passos de hip-hop, funk e samba, sendo executados pelos bailarinos, vestidos por figurinos na cor branca, de corte mais largo, melífluo como o espírito do povo daqui. Soares expressa seu desejo de ser reconhecido, depois de décadas morando no exterior, no país onde se formou.
Em países como Inglaterra e Rússia, bailarinos são amados como celebridades. Não à toa, Soares chegou a se encontrar, em diversas ocasiões, com a rainha Elizabeth 2ª, e ainda se apresentou na Cerimônia de Encerramento das Olimpíadas de Londres, em 2012. Sua fama só deve se acentuar, no ano que vem, com o lançamento de “Um Lobo Entre os Cisnes”, sobre a sua vida, dirigido por Marcos Schechtman. Nas telas, Matheus Abreu dará vida ao bailarino.
Nesse cenário, Soares não pensa em parar de dançar, tendo um novo espetáculo sendo produzido para o próximo ano. Etarista por definição, o balé não admite o envelhecimento. Por isso, o jeito é explorar novos estilos e adotar uma postura mais expressionista e menos acrobática. “Não quero só fazer passos, minha dança tem um pensamento agora”, afirma ele.
Nascido em São Gonçalo e criado em Vila Isabel, na zona norte carioca, Soares teve as primeiras aulas de balé aos 15 anos, uma idade já avançada. Para sustentar o desejo de ser bailarino, ele enfrentou o estranhamento do pai e o bullying dos colegas na escola.
Na época, ele ainda aprendia a se movimentar com o suporte, objeto que ampara a genitália do bailarino e, atrás, é formada por um minúsculo fio dental. “Filho, precisa disso mesmo para dançar?”, o pai perguntava a ele. Dois anos mais tarde, Soares já integrava o corpo de baile do Municipal do Rio de Janeiro. Em 2001, tornou-se o único brasileiro a conquistar a medalha de ouro no Concurso Internacional do Balé Bolshoi, da Rússia, o que chamou a atenção das companhias.
Depois de um estágio no Balé Mariinski, de São Petersburgo, ele ingressou no Royal Ballet, tendo sido promovido a solista num espaço de dois anos. Na instituição, foi aclamado por suas interpretações como o papel-título de “Oneguin”, obra de John Cranko com música de Tchaikóvski, e “A Bela Adormecida”, coreografia de Marius Petipa, também com música de Tchaikóvski. Sobretudo, se filiar à escola inglesa significou aprender uma nova forma de se praticar o balé. “A dança britânica me deu refinamento, controle de força e inteligência.”
Também foi em Londres que Soares conheceu a argentina Marianela Núñez, estrela internacional da dança, com quem atuou e teve um casamento, durante 13 anos. Desde 2020 longe do Royal Ballet, ele se dedica, agora morando no Brasil, a criar coreografias, como por exemplo, “Último Ato”, um caminho comum feito por bailarinos, com o passar do tempo.
Por aqui, ele se depara com a realidade paradoxal da dança. Ainda que o país nunca tenha tido tantos talentos nas principais companhias do exterior, esses artistas não ganham notoriedade no Brasil, cujo mercado da dança ainda é enfraquecido.
“É impressionante essa quantidade de escolas de balé. Mas de que adianta formar 30 bailarinos todos os anos? Todos vão para o Bolshoi? Vão para Paris? Não adianta a gente formar artistas de nível Bolshoi se não existe mercado para todas essas pessoas”, afirma o bailarino. O mais importante, diz ele, é formar plateias, com ajuda do governo, criando um ecossistema da dança. “É preciso que o público cresça com a gente. Se dançamos sozinhos, perdemos um pedaço de nós.”
GUSTAVO ZEITEL / Folhapress