SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Al-Brazil, na Faixa de Gaza, nem sempre teve esse nome. Conta-se que nos anos 1970, quando os israelenses transformaram a área vizinha à fronteira com o Egito em um conjunto habitacional para palestinos deslocados, batizaram-na de “Dekel B” –“dekel” é palmeira em hebraico.
Os palestinos não quiseram usar o nome israelense. Em vez disso, chamaram o bairro de Al-Brazil, uma referência à presença das tropas brasileiras no local nos anos 1950 e 1960.
Os soldados que compunham o chamado Batalhão Suez foram enviados como parte da primeira força de paz da ONU da história, estabelecida após a Guerra de Suez. Mais de 6.000 brasileiros serviram lá de 1957 a 1967, e integrantes do 20º e último batalhão testemunharam a eclosão da Guerra dos Seis Dias.
Meio século depois, a guerra Israel-Hamas, que completa um ano nesta segunda-feira (7), fez o bairro desaparecer. Ao menos foi isso que um ex-morador de Gaza disse à Folha quando o jornal o procurou para discutir a situação no local –o bairro não existe mais, segundo ele.
Imagens de satélite da empresa Planet Labs mostram que a declaração não é exagerada. Enquanto um registro feito em novembro de 2023, pouco mais de um mês depois de Israel invadir o território palestino, exibe prédios, casas e áreas verdes, uma captura de agosto de 2024 mostra apenas escombros cinzentos que se misturam com o deserto ao redor.
Uma dessas propriedades arruinadas pertencia a Nasser Hassanain, 53. Como muitos outros palestinos, ele soube que seu lar tinha sido destruído por meio de fotografias. “Ninguém pode voltar lá”, diz.
Hassanain conta que morou no bairro a vida toda. “Meu pai, que Deus o abençoe, nos contava histórias sobre os soldados brasileiros que viviam aqui antes de 1967”, afirma. “Para mim, é o melhor lugar do mundo. É onde eu passei minha infância, onde fui feliz.”
Esta não é a primeira vez que o bairro é atacado. Algumas de suas construções já tinham sido derrubadas em uma outra ofensiva do Estado judeu ao local, em 2014. De acordo com a ONG Human Rights Watch (HRW), uma incursão anterior, ocorrida em maio de 2004, também demoliu um grande número de propriedades.
A operação de 2004 é descrita em minúcias em um relatório da organização publicado naquele mesmo ano. Segundo o documento, na ocasião os militares israelenses usaram tratores para abrir caminho entre as casas em vez de usar as rodovias para se deslocar, provavelmente para evitar minas. Vários moradores tiveram apenas alguns instantes para deixar suas residências. Alguns estavam dentro delas quando as demolições tiveram início.
A situação atual de Al-Brazil não é muito diferente daquela do resto de Gaza, que perdeu cerca de 66% de suas construções desde o início da guerra, de acordo com uma avaliação publicada em setembro pela ONU.
Nadia Hardman, pesquisadora da HRW para a área de migração e direitos de refugiados, afirma que basicamente não há mais “universidades, escolas, templos religiosos, sítios culturais, infraestruturas de água e de energia”.
O argumento de Israel é que grupos como o terrorista Hamas costumam utilizar esses lugares associados à vida civil para esconder centros de comando militar e armas, entre outros. Desse modo, sustenta Tel Aviv, atacá-los é um objetivo militar legítimo.
A questão, diz Hardman, é que segundo o direito internacional é necessário não só dar abrigo digno aos que foram prejudicados por esses ataques, mas também garantir que eles poderão em algum momento retornar para o lugar onde vivem.
“Um dos elementos que estamos analisando é que essa destruição é tão sistemática e generalizada que talvez indique uma política que busca deslocar a população à força”, diz ela. “Não posso dizer que essa é a nossa conclusão, mas estamos vendo que as evidências estão se acumulando.”
Newsletter Lá Fora Receba no seu email uma seleção semanal com o que de mais importante aconteceu no mundo *** Hassanain deixou Al-Brazil em 7 de maio deste ano, um dia depois de o governo de Israel ordenar o esvaziamento de partes de Rafah, cidade onde fica o bairro. Desde então, vive em Al-Mawasi, município costeiro localizado a cerca de dez quilômetros a oeste de Rafah e designado como uma zona segura por Israel em dezembro de 2023. Ele conta que seis de seus sete filhos moram com ele lá.
O palestino é cunhado de Mohammad Farahat, 43, que veio para o Brasil no início da guerra –a mulher e os três filhos de Farahat, que o acompanharam, têm cidadania brasileira.
Hassanain relata que tentou sair de Gaza, sem sucesso. “Vivemos em condições ruins, sem comida ou água”, diz sobre a vida em Al-Mawasi. “É inverno agora, está muito frio aqui. Vivemos uma vida sem esperança.”
CLARA BALBI / Folhapress