‘Bandida’ conta história da primeira mulher a comandar o tráfico numa favela do Rio

RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Em “Bandida: A Número Um”, filme de João Wainer que chega aos cinemas nesta semana, a violência nas favelas do Rio de Janeiro é retratada sob um ponto de vista incomum. Os holofotes estão na mulher –e uma mulher bandida, que não só dá apoio aos homens, mas protagoniza as cenas de ação.

Ela é Rebecca, que chefiou o tráfico na Rocinha na década de 1980. A personagem, interpretada pela atriz Maria Bomani –que faz sua estreia como protagonista depois de atuar na novela “Amor de Mãe”, da TV Globo, em 2019 e 2021–, vive uma infância de desgraças e é apadrinhada por bicheiros que controlavam o morro.

Ela chega ao posto de líder depois de um namoro arrebatador com Pará, chefe do tráfico que acaba morto e é interpretado por Jean Amorim, que viveu Pedro Bala no filme “Capitães da Areia”, de 2011. O amor bandido é o centro da história.

Com sua narradora feminina, o filme se distancia de obras como “Cidade de Deus”, com Buscapé, um jovem observador, ou “Tropa de Elite”, com Capitão Nascimento, um policial sob estresse.

“Um filme que começa com uma mulher que liga no volume máximo ‘Deslizes’, do Fagner, e depois joga uma bomba, não é um filme duro e seco”, diz Wainer, que também acaba de lançar “Doleira”, sobre outra personagem feminina –Nelma Kodama, a primeira mulher presa na Operação Lava Jato, na Netflix..

O filme é baseado na história real de Raquel de Oliveira, autora do romance “A Número Um”, publicado pela editora Casa da Palavra em 2015. Oliveira namorou Ednaldo de Souza, o Naldo, um dos mais conhecidos líderes do tráfico da Rocinha.

Naldo chegou a ser o homem mais procurado pela polícia fluminense. Em 1988, ele deu entrevistas para os diários Jornal do Brasil e O Dia, que o fotografaram. Foi filmado disparando rajadas de metralhadora para o alto e lançou moda ao posar vestido com um casaco de capuz.

O traficante foi morto numa troca de tiros com a polícia em julho daquele mesmo ano, num sítio numa favela de São Gonçalo, nos arredores da capital fluminense. Mais de 30 policiais e um helicóptero foram capturar o bandido.

O filme retrata o episódio em que morreram Cassiano e Brasileirinho, que ficou famoso ao posar para uma fotografia de jornal ainda criança, armado e com cordões no pescoço. O retrato, publicado na mesma época do lançamento de “Pixote, A Lei do Mais Fraco”, filme lançado em 1981, comoveu a cidade –na obra, um menino de 11 anos foge de um reformatório e acaba se tornando traficante, assassino e cafetão no Rio de Janeiro.

“Eu levei dois anos para escrever o livro. No começo, sofri muito, chorei, mas quando o trabalho foi concluído eu estava liberta de todas as culpas, remorsos, arrependimentos”, afirma Oliveira, a autora do livro que inspira “Bandida”. “Tem momentos do filme em que minha memória volta lá, quase de forma sobrenatural. Vejo direitinho as coisas que aconteceram de verdade. E Maria está ótima. Ela cresce em cena.”

Da mesma forma que fez ao dirigir o documentário “Junho”, produzido por este jornal e lançado há dez anos, retratando as manifestações que pararam o país em 2013, Wainer lança mão de imagens de arquivo de telejornais das favelas cariocas dos anos 1980, que eram diferentes.

A Rocinha tinha mais de 200 mil habitantes em 1988, segundo as estimativas do governo. Era um bairro da cidade e políticos em campanha não demoravam a visitar a associação de moradores, disputada a dentadas pelos líderes comunitários. Havia eleição direta mesmo quando o país não elegia seu presidente.

A favela também era tomada pelo lixo, não havia saneamento básico nem fornecimento de água. Foi também nessa época que a venda de cocaína disparou nas comunidades, e os traficantes trocaram revólveres por fuzis e submetralhadoras. Na Rocinha, começaram os conflitos, com o morro dividido entre parte alta e baixa e marcado por golpes e operações policiais.

Outras cenas de “Bandida” foram gravadas com uma câmera Betacam, comprada especialmente para o filme. “Queria trazer algo que fosse esteticamente diferente e suave. A câmera que todas as principais emissoras de TV usavam era essa”, diz o diretor.

O longa foi gravado no morro Pavão-Pavãozinho, em Copacabana. “A sensação que tenho é que, quando estamos em externa, as gravações lembram o Jornal Nacional da época. Quando vamos para uma interna, lembram as novelas.”

Outra inspiração para a montagem, segundo o diretor, foi o TikTok. “Tenho filhas e vejo como essa geração lida com o TikTok e a sobreposição de informação. Ele tem uma linguagem suja. Partes do filme têm um ritmo um pouco mais frenético e alucinado que lembra esse ritmo.”

A Rocinha cresceu ocupada por famílias que saíram de estados do Nordeste em busca de renda no Rio de Janeiro. Elas ergueram barracos morro acima e garantiram moradia perto dos postos de trabalho da zona sul. Eram pedreiros, porteiros, garçons e empregadas domésticas em São Conrado, Leblon, Ipanema e Copacabana.

Por isso, Wainer decidiu não mexer no sotaque de ninguém. O cantor pernambucano Otto, que interpreta o traficante Del Rey, fala como um homem pernambucano, assim como o baiano Jean Amorim e a carioca Maria Bomani mantêm suas origens.

Mas a ambientação dos anos 1980 foi um ponto de atenção para o rapper carioca Sant, estreante nas telas no papel de Boca Mole, amigo de infância de Rebecca, que também entra para o tráfico.

“O recorte do tempo em alguns momentos ressoou na cabeça porque uso gírias o tempo inteiro. Mas muitas dessas gírias eu recebi dessa malandragem das décadas de 1980 e 1990”, diz. “A equipe técnica me ajudou demais. Foi tudo novo e tudo mágico.”

Raquel de Oliveira, que escreveu o livro no qual o filme se baseou, ainda vive na Rocinha e deixou a relação com o tráfico de drogas ainda na década de 1990.

Além de escritora –ela também se dedica à poesia– , Oliveira ainda trabalha como pedagoga e palestrante atualmente. “O que carreguei daquela vida foi a cocaína, da qual estou limpa há dez anos, e o amor. Naldo foi um homem maravilhoso na minha vida e nunca mais tive um amor como o dele”, diz.

“Mas a gente há de convir que, quando uma pessoa morre durante a relação, o amor fica estacionado naquele ponto, e as crises naturais de relacionamentos não são vividas. Fica uma coisa encantada, em suspenso.”

BANDIDA: A NÚMERO UM

Quando: 20 de junho nos cinemas

Classificação: 18 anos

Elenco: Maria Bomani, Jean Amorim, Milhem Cortaz e Otto

Direção: João Wainer

YURI EIRAS / Folhapress

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