BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Uma piada que virou um ato político. É assim que Jards Macalé define o espetáculo “Banquete dos Mendigos”, que neste domingo (10), aniversário da promulgação da Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas), completa 50 anos.
O show foi divulgado informalmente por crianças de rua, aconteceu em um Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro cercado por militares, no auge da ditadura militar, e reuniu vários dos maiores nomes da música brasileira, com interpretações históricas e inéditas, registradas em uma gravação clandestina.
“Mas submergiu no meio de tanta loucura, de tanta confusão”, diz Macalé à reportagem.
Era o fim da década de 1960, começo da de 1970, quanto tornaram-se comuns atos artísticos para beneficiar determinada causa, pessoa ou instituição.
Época também em que Macalé vivia uma “penumbra danada” financeiramente, brigando com gravadoras, enfrentando problemas de direitos autorais e com discos pendurados, sem lançar.
“Achei que deveria fazer um show em meu benefício, em autobenefício. Era uma piada, naturalmente, mas todo mundo topou”, conta.
À procura de um palco, conversou com o então diretor da Cinemateca do MAM carioca, Cosme Alves Neto. Surgiu a ideia de vincular a brincadeira à política, em um evento de aniversário da Declaração de Direitos Humanos da ONU, intercalando músicas e a leitura de artigos da carta pelo poeta Ivan Junqueira.
Batizou de “Banquete dos Mendigos” e a divulgação, para driblar a censura, foi informal. “Fizemos panfletos com data, hora e local, e botamos na mão de meninos de rua, que saíram distribuindo pelo Rio”, diz o cantor.
Xeque-mate na ditadura, que não arriscaria impedir um evento chancelado pela ONU.
Aconteceu no segundo andar do museu, segundo seu idealizador, sob cerco de militares do lado de fora e infiltrados por dentro. Três mil pessoas e uma “patota doida” no palco.
Além do próprio, também Chico Buarque, Gal Costa, Paulinho da Viola, Milton Nascimento, Toninho Horta, Dominguinhos, Edu Lobo, Danilo Caymmi, Luiz Melodia, Jorge Mautner, MPB4, Nelson Jacobina, Raul Seixas, Johnny Alf e um então cantor anunciado como Luiz Gonzaga Júnior, o Gonzaguinha.
Maurice Hughes, engenheiro de som que fez o show “Transa”, de Caetano Veloso, em sua turnê pela Europa, coincidiu de estar no Rio.
“Ninguém gravava nada no Brasil. Galera fazia o show e foda-se, vamos nessa. O negócio era fazer a ação. Só quem pensou no áudio foi um inglês”, diz Macalé.
Questionado por um policial, Hughes respondeu que seu gravador era, na verdade, uma câmara de eco, um equipamento de efeitos sonoros.
“Embromou o cara tecnicamente e gravou. A gente ia tirando as fitas escondidos, à medida que iam acabando, passando de mão em mão até elas acabarem longe dali. Assim o show inteiro”.
Para sair do teatro, cercado por militares, os músicos fizeram fila e colocaram um diretor da ONU na frente. Passaram ilesos pelo corredor polonês que os aguardava.
O sucesso colocou Macalé mais uma vez em brigas com gravadoras e com a censura do governo de Garrastazu Médici.
“Eu já estava visado, como todos nós, mas a partir daí começou um cerco a mim, à minha casa, às minhas atividades”, diz.
O disco custou para ser produzido. Foi um périplo de porta em porta de gravadoras até chegar na RCA, onde o compositor Vitor Martins topou, escondido, pegar o material e transformar em álbum –sem nem a direção da própria gravadora saber até ficar pronto.
As para lá de quatro horas de áudio acabaram editadas, intercalando faixas e leituras da carta, para caber em um disco-declaração “barra pesada”.
Primeiro, a censura barrou a capa: uma fotografia de crianças negras recebendo comida atrás de um caminhão da ONU. Tentaram uma segunda vez, e os militares vetaram a obra toda.
Só cinco anos depois, e com uma capa feita pelo artista plástico Rubens Gerchman –uma releitura da santa ceia–, ele saiu.
O lançamento, já em 1979, foi na Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, e só aconteceu, segundo Macalé, por intervenção de um dos líderes do golpe militar de 1964.
Por conta de um boato de que o regime poderia soltar bombas para atrapalhar o evento, Macalé convocou um amigo, advogado, para deixar uma equipe à paisana caso tudo desse errado. E pediu ajuda à então diretora do MAM do Rio, Heloísa Aleixo Lustosa, cuja família era amiga de Golbery do Couto e Silva.
O músico conta que o militar, ainda irritado por ter sido preterido na escolha do primeiro presidente da Ditadura, respondeu a Lustosa que também queria descobrir quem eram os militares que ameaçavam o evento.
“O show aconteceu sob três segredos: os agentes secretos do Golbery, os do meu advogado e os que queriam jogar bomba. E no meio disso tudo, a gente distribuindo balas e doces para as crianças”.
Era dia de Cosme e Damião.
Ao invés de músicos, Macalé abriu o palco para o público, em suas palavras, fazer qualquer coisa –teve até homem com camisa do Flamengo equilibrando garrafa de vinho na cabeça, lembra.
À pedido de Lustosa, Macalé foi, depois, à Brasília, fazer um segundo lançamento, e acabou recebido justamente por Golbery.
“Meus coleguinhas ficaram putos, como se eu estivesse entregando aquela obra para a Ditadura. Ninguém estava entendendo aquela distensão gradual e segura, que estava na hora de abrir, não ficar jogando pedra um no outro”, lembra.
“Aí a revista Veja fez uma entrevista de páginas amarelas comigo. No meio, como estava pressionado por dizerem que eu era entreguista, disse a frase pela qual passei 11 anos sendo boicotado: ‘No Brasil, a esquerda é de direita’. Aí fodeu tudo”, conta.
Macalé diz que, no fim, não ganhou dinheiro. Recebeu, sim, uma medalha da ONU e protagonizou uma icônica foto na qual ergue a declaração dos direitos humanos. Mas conseguiu realizar uma obra que, na sua opinião, é histórica.
Lembra, por exemplo, o raro momento em que Luiz Melodia toca seu “espetacular” violão; também as “magistrais” interpretações de Paulinho da Viola; ou ainda a “arrasadora” apresentação de um então pouco conhecido Johnny Alf.
Foi também no ato que Chico Buarque, enquanto esperava o conserto de um baixo pifado, anunciou uma música nova, ainda não totalmente pronta, que estava compondo com Jorge Ben Jor.
Cantarolada sob voz e violão aconteceu a provável primeira apresentação Jorge Maravilha ao público –e a fofoca da época foi que a canção era sobre a filha de Ernesto Geisel.
“Não era um festival, era uma reunião de amigos para realizar, no final, um gesto político”, completa Macalé.
JOÃO GABRIEL / Folhapress