Batatinha, 100, desvelou samba da Bahia com obra entre a doçura e a melancolia

SALVADOR, BA (FOLHAPRESS) – Os dedos que manejavam com agilidade as linhas de chumbo na gráfica que imprimia o jornal Diário de Notícias, em Salvador, também batucavam caixas de fósforos, que moldavam o ritmo de suas composições.

Negro retinto, cabeça precocemente grisalha e óculos de grau dependurado no rosto, o cantor e compositor Oscar da Penha, o Batatinha, era uma espécie de dândi. Com altivez, elegância e uma dose de melancolia, ajudou a desvelar o samba em seu berço, inspirando uma geração de sambistas da Bahia.

Nesta segunda (5), completaria cem anos de nascimento, legando uma obra que inclui cerca de 70 composições, quatro discos, canções gravadas por grandes nomes da música e a reverência de mestres do samba.

“Na história do samba brasileiro, Batatinha é um nome de grande destaque. Era uma pessoa muito doce, muito educada e um compositor fantástico. Tive a honra de conhecê-lo”, diz Paulinho da Viola, cantor e compositor que foi homenageado pelo baiano em 1973 com a música “Ministro do Samba”.

Batatinha nasceu Oscar da Penha, menino de família pobre nascido em Salvador em 5 de agosto de 1924. Órfão de pai e mãe, começou a trabalhar cedo. Foi marceneiro, entregador de marmita, office boy e gráfico em jornal.

Na vida pessoal, era o oposto do arquétipo do malandro. Educado e fino no trato, desdobrava-se em mais de um emprego. Casou-se aos 16 anos com Marta, sua única esposa até o fim da vida, com quem teve nove filhos.

O apelido que carregaria por sua trajetória artística surgiu em um programa de calouros na Rádio Sociedade da Bahia, comandado pelo cronista pernambucano Antônio Maria.

Ao entrar no estúdio do programa Campeonato do Samba, quis se apresentar com o nome Vassourinha, homenagem ao sambista paulista que o inspirava. Mas foi anunciado pelo locutor como “Oscar da Penha, o Batatinha”, expressão usada na época para dizer que alguém era boa gente.

Compôs seus primeiros sambas nos anos 1940, auge da era do rádio, influenciado pelos sambistas cariocas. Mas também bebeu na fonte do samba do recôncavo baiano, criou uma identidade própria e produziu um cancioneiro variado, indo de sambas-canção a marchinhas de Carnaval.

Participou de concursos carnavalescos sem muito sucesso. Ganhou somente em 1964 com a marchinha “Foi Macumba”, parceria com Walmir Lima, vencendo outras 120 composições inscritas. Entre os concorrentes estavam os jovens Caetano Veloso, com “Samba da Paz” e Gilberto Gil, com “Decisão (Amor de Carnaval)”.

“Ele fazia sambas tristes, por isso quase sempre não ganhava”, afirma o cantor e compositor Paquito, produtor ao lado de J. Velloso do disco Diplomacia, lançado de forma póstuma em 1998.

A música que dá nome ao disco é uma das expressões máximas de sua obra: “Meu desespero ninguém vê/ Sou diplomado em matéria de sofrer”, canta Batatinha, que no samba baiano foi uma espécie de antípoda de seu contemporâneo e amigo Riachão, cuja obra é marcada por uma alegria expansiva.

Para Gilberto Gil, que reconhece a influência do sambista baiano no germinar de sua paixão pela música, Batatinha fazia uma espécie de samba-blues. Paulinho da Viola afirma ver doçura nas canções. “Ele era uma espécie de cronista, como a maioria dos sambistas. Era uma pessoa muito sensível”.

O primeiro degrau como compositor foi escalado com “Jajá da Gamboa”, música gravada em 1957 por Jamelão. A letra é uma crônica de costumes, com verve satírica e de humor, fórmula que faria sucesso com o samba de breque.

Nos anos seguintes, a canção “Diplomacia” foi incluída na trilha sonora do filme “Barravento”, de Glauber Rocha. Mas a visibilidade nacional viria em meados dos anos 1960 pelas mãos de uma jovem Maria Bethânia.

Em seu primeiro disco, de 1965, ela uniria as músicas “Diplomacia” e “Só Eu Sei” em uma versão definitiva. A canção fez parte do show “Nós, por Exemplo”, de 1964, que uniu Bethânia, Caetano Veloso, Gil e Gal Costa em shows no Teatro Vila Velha, em Salvador. Também fez parte do icônico show “Opinião”, já após a ida da cantora baiana para o Rio de Janeiro para substituir Nara Leão.

Bethânia voltaria a gravá-lo no álbum Drama, de 1972, no qual incluiu a canção “O Circo”. A música faz troça de modo sério e traduz a vivência de um compositor que nunca conseguiu viver só da música: “Todo mundo vai ao circo / menos eu, menos eu / Como pagar ingresso / se eu não tenho nada? / Fico de fora escutando a gargalhada.”

Na Bahia, ao lado de Riachão, foi um amálgama para uma geração de sambistas como Walmir Lima, Edil Pacheco, Nelson Rufino e Ederaldo Gentil, muitos dos quais seriam seus parceiros de composição.

“Se não fosse Batatinha, eu não estaria aqui. Cresci a partir dos ensinamentos dele”, afirma o cantor Edil Pacheco, parceiro em dezenas de shows e companheiro de andanças nas madrugadas pelas ruas e feiras de Salvador.

Em vida, lançou os discos “Samba da Bahia”, com Riachão e Panela, “Toalha da Saudade” e 50 Anos de Samba”. Fez músicas em parceria com J. Luna (“Toalha da Saudade”), Roque Ferreira (“Bolero) e Paulo César Pinheiro (“Conselheiro”). Suas melodias, construídas ao ritmo da caixa de fósforos, trazem uma beleza melancólica que posteriormente o colocaria no panteão de grandes nomes do samba.

“É um sambista do mesmo nível de Cartola e Nelson Cavaquinho, mas nunca saiu da Bahia. Por isso sua obra ficou praticamente escondida, como que guardada em um casulo”, diz J. Velloso.

No fim dos anos 1990, época que a música baiana atingiu seu auge mercadológico com a axé music, Velloso e Paquito decidiram produzir o disco “Diplomacia”. Mas, pouco depois do início das gravações, Batatinha começou a tratar um câncer. Morreria meses depois, aos 72 anos.

Em 1997, foi homenageado e teve um dos circuitos do Carnaval de Salvador, do Pelourinho, batizado com o seu nome. Sua obra revisitada por artistas como Adriana Moreira, que gravou um disco só com músicas do compositor baiano em 2006.

Sua história foi contada no documentário “Batatinha e o Samba Oculto da Bahia”, de 2007, dirigido por Pedro Habib. No ano seguinte, foi lançado o filme “Batatinha, o Poeta do Samba”, de Marcelo Rabelo, que reconstitui a história do sambista sob a ótica de seus filhos. Ambos estão disponíveis no YouTube.

Neste ano de centenário, as homenagens foram pontuais. Em São Paulo, foi lembrado neste fim de semana em shows da cantora Adriana Moreira no Sesc Pompeia, com participação do sambista Nelson Rufino e do artista plástico Lucas Batatinha, filho do sambista.

Em Salvador, será homenageado nesta segunda e terça-feira (6) com missas na Igreja do Rosário dos Pretos, da qual ele fazia parte da Irmandade, e com uma roda de samba liderada pelo Grupo Botequim, na sexta-feira (9), no Santo Antônio Além do Carmo.

Na quinta-feira (8), uma mesa na Flipelô, a Festa Literária Internacional do Pelourinho, debate a obra do sambista. Em 29 de agosto, ele será tema de uma sessão especial na Assembleia Legislativa da Bahia.

Amigos, família e parceiros de caminhada cobram mais visibilidade para a obra do sambista, sobretudo além das divisas da Bahia. “Temos que reverenciá-lo sempre”, afirma Paulinho da Viola, ministro do samba.

JOÃO PEDRO PITOMBO / Folhapress

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