Bernardine e Conceição Evaristo ensinam a derrubar portas para a autoria negra

RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – “Parece outra cidade”, diz Bernardine Evaristo sobre o Rio de Janeiro. “Não só comparada à que conheci há 32 anos, quando vim pela primeira vez ao Brasil, mas da minha outra vinda à Flup, em 2013. A presença negra é muito maior. Você sente essa energia.”

Evaristo chega à cidade também como uma escritora maior. Em 2019, a britânica se tornou a primeira mulher negra a vencer o Booker, mais prestigioso prêmio da literatura em inglês. Foi por “Garota, Mulher, Outras”, romance escrito em múltiplas vozes que fizeram seu nome ressoar mais longe. Agora, ela vem à Festa Literária das Periferias como a convidada internacional de maior reconhecimento.

Sua conversa no festival foi com uma das grandes autoras brasileiras em atividade, Conceição Evaristo, e o sobrenome é coincidência -ou será que é?

A ideia da mesa era justamente mostrar como culturas separadas pelo Atlântico têm proximidades insólitas manifestadas, por exemplo, no nome. A britânica não tem só raízes nigerianas como brasileiras. Seu avô paterno negro, sobre o qual sabe pouco, viajou do Brasil à África no período pós-escravidão.

Outra semelhança entre as autoras é como a literatura surge em diversas formas. A brasileira ficou conhecida em livros, mas também em saraus lendo prosa e poema em voz alta, como fez na Flup na segunda-feira. Já a colega estrangeira tinha carreira como dramaturga e atriz de teatro antes de fazer história no Booker.

“Eu sempre fui uma autora experimental, com um trabalho que funde poesia e ficção”, afirma Bernardine, em entrevista à reportagem antes de subir ao palco. “A literatura, como arte, está ali para ser explorada para além das fronteiras da narrativa convencional. Imagino personagens em primeira pessoa que, às vezes, saem do papel de forma dramática.”

Isso teve uma encarnação bastante viva na recente versão para a TV de “Sr. Loverman” produzida este ano pela BBC -uma experiência de ver seus personagens “táteis e tangíveis de um jeito mesmerizante”.

O romance, publicado em 2013 e editado há poucos meses pela Companhia das Letras, conta a história de Barry, um homem caribenho de 74 anos que vê seu casamento ruir de vez quando ele decide assumir sua paixão pelo melhor amigo. “Eu comecei a escrever o personagem e sua voz falou comigo. Eu senti que a voz de Barry escreveu o romance, e eu só estava fazendo o que ele me mandava.”

A voz foi assunto de predileção da mineira Conceição Evaristo na noite desta quarta, sentada ao lado da britânica diante de um auditório cheio no Circo Voador.

“O lugar primordial em que nós, negros brasileiros, tentamos criar nossa identidade foi na oralidade, nas histórias repassadas através do tempo”, disse ela. “Essa consciência difusa da nossa negritude sempre existiu, o que nós não tínhamos era um discurso construído sobre isso.”

A afirmação mais marcada veio na década de 1970, ao lado dos movimentos afro-americanos e de libertação das colônias africanas. Antes, segundo ela, havia uma vivência que sempre se manifestou nas artes e nas religiões, de forma pouco institucionalizada, mas se enraizando no Brasil.

“Quando um brasileiro chega lá fora, ninguém pergunta ‘você sabe dançar valsa?’ Normalmente se imagina que ele, branco ou negro, saiba dançar samba. Então as culturas negras marcam profundamente nossa brasilidade, mas de uma maneira muito contraditória, porque enquanto estamos no lazer, tudo é possível, mas quando se trata de reivindicação política, aí as coisas mudam de lugar.”

As duas autoras se irmanaram ao dizer que jovens negros de hoje encontram caminho mais fácil de reconhecimento depois que a geração delas derrubou portas teimosamente fechadas.

“Hoje é mais inclusivo que nunca no Reino Unido”, afirmou Bernardine, que tem na memória ouvir de muitos editores que livros sobre experiências negras só interessariam a pessoas negras e, portanto, não venderiam.

Em seguida ela lembrou que as primeiras pessoas negras publicadas por lá foram homens de origem caribenha com histórias de meados do século. A primeira onda de mulheres veio só nos anos 1990, algo que a própria escritora de 65 anos acompanhou de perto -e pesquisou.

“Percebi um padrão. Elas escreviam histórias de infância, crescimento, dinâmicas familiares. E todas tocavam em abuso sexual, dentro ou fora da família. Nós não falaríamos tanto disso se elas não tivessem escrito essa ficção.”

“As próximas gerações estão com a faca e o queijo na mão”, brincou Conceição. “Quando nós começamos a escrever, não tínhamos editoras que apostavam na gente, hoje elas buscam o nosso trabalho. Isso significa que a gente tem um público leitor bom. Uma editora não vai investir num autor se não acredita que ele dê retorno.”

Nada disso aconteceu de graça, frisou a escritora de 77 anos. Seu primeiro romance, “Ponciá Vicêncio”, foi publicado pela pequena editora Mazza com recursos da própria autora em 2003. “Eu fiquei um ano trabalhando no vermelho.”

“Modéstia à parte, foi a nossa geração que cavou esse caminho”, apontou ela, que agora colhe os louros -foi convidada ao vivo no palco para ser a homenageada da próxima Flup, em 2025, sob uma onda insistente e demorada de aplausos.

WALTER PORTO / Folhapress

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