SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Na extraordinária obra-prima ‘Grande Sertão: Veredas’, há de tudo para quem souber ler, e nela tudo é forte, belo, impecavelmente realizado”, escreveu o crítico Antonio Candido no ensaio “Tese e Antítese”.
Se é assim, quem vai se atrever a levar esse monumento para a tela grande? Aos poucos, nossos diretores tomam coragem. Só neste ano os cinemas recebem duas produções que enfrentaram a obra-prima de Guimarães Rosa. Em junho, Guel Arraes lançou sua versão e, agora, estreia “O Diabo na Rua no Meio do Redemunho”, a visão de Bia Lessa.
“A pretensão não é pouca”, disse a cineasta, no último Festival de Tiradentes, em Minas Gerais, sobre a decisão de fazer um filme a partir do livro de 1956. Na verdade, tratar a diretora como “cineasta” é uma simplificação. Ela dirigiu peças como “As Três Irmãs”, com Renata Sorrah, e vários shows de Maria Bethânia. Montou exposições, caso de “Cartas ao Mundo”, e lançou longas como “Crede-Mi” e “Então Morri”, ambos com Dany Roland.
Há quase duas décadas, Rosa a acompanha nesse ziguezague. Em 2006, Lessa concebeu uma mostra sobre “Grande Sertão” para o Museu da Língua Portuguesa. Passados 11 anos, conseguiu levar o romance do autor para o teatro.
Em 2018, Lessa preparou “Diabo na Rua” com o mesmo grupo de atores que tinha participado da montagem teatral, caso de Caio Blat, Luiza Lemmertz, Luisa Arraes e Leonardo Miggiorin. As filmagens aconteceram ao longo de 17 dias. “Filmar em tão pouco tempo era uma espada na cabeça da gente. Foi uma tensão imensa”, lembrou a diretora.
O resultado em nada remete a um olhar fiel dos conflitos de Diadorim, Riobaldo e outros jagunços conforme Rosa os descreveu. Em vez de adaptação, Lessa prefere o termo “transcriação”, que pressupõe maior liberdade criativa.
“Tanto no cinema como no teatro, vai para a cena o que está vivo. Não tivemos pudor em tirar [o que tinha menos força]”, ela contou. Ainda assim, “Grande Sertão” não foi estilhaçado –o fio condutor do romance está ali, ora em evidência, ora subentendido.
Tanto Guel Arraes quanto Lessa fugiram da saída mais evidente, que seria explorar as imagens do sertão que compreende parte do norte de Minas Gerais e do sul da Bahia e que, em alguma medida, inspirou Guimarães Rosa.
O “Grande Sertão” de Guel Arraes se passa numa comunidade periférica de uma grande metrópole nos dias de hoje, com confrontos entre policiais e bandidos que dão ao filme um tom épico.
Lessa, por sua vez, realizou as filmagens em um estúdio em São Paulo, com o chão e as paredes completamente pretas. Em meio a poucos elementos cenográficos, o tom é mais sóbrio e minimalista.
Além de viver seus personagens, os atores criam ambientações. Luiza Lemmertz interpreta Diadorim e, como no filme de Guel Arraes, Blat é Riobaldo. Mas o elenco também constrói a natureza do autor. São os movimentos do grupo que dão vida, por exemplo, ao rio São Francisco e seus peixes.
Embora o filme tenha vindo logo depois de uma experiência teatral, Lessa disse se afastar do chamado “teatro filmado”. Lembra, por exemplo, a presença da grua, um sistema de guindaste onde a câmera é instalada. Além disso, o amor de Riobaldo por Diadorim é muito mais reforçado no filme do que era na peça.
O que “Grande Sertão” nos diz neste ano de 2024? Segundo Lessa, o romance sempre conduziu os leitores pelas vias da reflexão e da sensibilidade. E assim seguirá. “É uma obra que estabelece um outro valor para a humanidade. O que significa estar na vida?”
NAIEF HADDAD / Folhapress