SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A legalização do jogo do bicho, discutida no Senado, não deve acabar com o jogo ilegal, avalia o sociólogo Michel Misse. “O banqueiro que está na ilegalidade não conseguirá se adequar às exigências do projeto de lei e não vai abrir mão de seus negócios”, diz Misse, uma das principais referências no país sobre jogo do bicho e contravenção em geral no Rio de Janeiro.
A avaliação de Misse coloca em dúvida a eficácia das travas que tentam justamente evitar a continuidade do jogo ilegal, na lei que regulamenta o jogo do bicho, cassinos, bingos e corridas de cavalo, em tramitação no Congresso. O texto lista vários requisitos de integridade para evitar que condenados por jogo ilegal e lavagem de dinheiro entrem no mercado regular.
Pela versão atual do texto, não poderão operar jogos as pessoas “condenadas a pena criminal que vede, ainda que temporariamente, o acesso a cargos públicos, por decisão judicial transitada em julgado”. É um critério similar à lei da Ficha Limpa, usada no processo eleitoral.
O trecho ainda impõe limitações aos condenados por improbidade administrativa, crimes falimentares ou contra a economia popular, sonegação fiscal, prevaricação, corrupção ativa ou passiva e peculato. São tipificações recorrentes em processos contra investigados por jogo ilegal.
O relator do projeto de lei, o senador Irajá (PSD), diz que há perspectiva de aprovação no ano que vem, para “encerrar a hipocrisia sobre as apostas no país”. Entretanto, uma tentativa de levar a proposta à votação ainda neste ano foi frustrada e o PL foi retirado de pauta, a pedido do parlamentar, que culpou a impopularidade das apostas online.
Para o professor emérito da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), que se debruça sobre as economias ilegais no Rio de Janeiro há 30 anos, ainda que a lei seja aprovada e mantenha as salvaguardas, os contraventores hoje no controle das bancas de bicho devem continuar a oferecer apostas a preços acessíveis, por não pagarem impostos.
“É igual ao que acontece com o mercado de cigarro popular”, diz ele em referência à venda de marcas não autorizadas pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) a preços módicos.
Segundo o sociólogo, os banqueiros do jogo do bicho já comandam uma estrutura complexa, que não será facilmente desmontada. “Abaixo deles, estão os vendedores, os seguranças e até profissionais liberais, como contadores e advogados”, afirma o professor.
É natural, ainda, que os chefes estejam em outros setores além do jogo, incluindo apostas na internet, as bets, diz ele. A operação contra lavagem de dinheiro envolvendo o bicheiro Rogério Andrade, por exemplo, teve como alvo um restaurante em Ipanema. O denunciado por contravenção Adilson Oliveira Coutinho Filho, que é patrono da Grande Rio, mantém a própria fábrica de cigarros da marca Club One.
Na avaliação de Misse, o principal interessado na legalização das apostas -principalmente de olho nos cassinos- é o setor hoteleiro. “Nos anos 1980, o Frank Sinatra veio ao Brasil com vários investidores de Las Vegas, com a ideia de construir um cassino no Rio de Janeiro”, recorda o sociólogo.
Sinatra tinha uma relação umbilical com os cassinos de Vegas e fez 334 apresentações apenas no Caesars Palace (que hoje tem uma bet no Brasil). Os hotéis voltados às apostas eram, em ampla maioria, de propriedade da máfia italiana nos EUA e entraram na legalidade por decisão do estado de Nevada em 1931.
Desde então, grupos de pressão se mobilizam pela permissão da atividade no Brasil.
O projeto hoje em discussão é de 1992 e versava apenas sobre a liberação de cassinos e corrida de cavalo. A Câmara incluiu o jogo do bicho no texto em 2021, por iniciativa do deputado Bacelar (PV-BA), antes de aprová-lo em 2022.
O argumento de Bacelar foi o de que o jogo do bicho já movimentava por ano R$ 12 bilhões e empregava 450 mil pessoas, o que tornava interessante tributar a atividade.
Misse aponta ainda que os líderes do jogo do bicho nunca foram particularmente vocais sobre a legalização das apostas, embora tivessem influência política. “Todos os governos fluminenses fizeram vistas grossas para a jogatina, pelo menos até os anos 2000.”
Essa relação mudou, porém, depois de reveses na Justiça, segundo o sociólogo. “Os chefes do jogo do bicho hoje estão mais acuados [em relação à vida pública] e também desconfiados da imprensa.”
PEDRO S. TEIXEIRA / Folhapress