MANASSAS, VIRGÍNIA (FOLHAPRESS) Tinha tudo para ser um gol. Um comício fechado, com uma plateia de convidados e fileiras de jornalistas, para defender o direito ao aborto. Mas foi constrangedor.
Joe Biden foi interrompido diversas vezes por ativistas pró-Palestina, que o chamaram de genocida, pediram um cessar-fogo e o questionaram sobre os direitos femininos em Gaza quando o presidente citou a necessidade de proteger as mulheres das leis antiaborto.
Os manifestantes se espalharam por diversos pontos do auditório da Universidade George Mason, em Manassas, no norte do estado da Virgínia. A cada vez que um deles se levantava para gritar palavras de ordem contra o presidente, policiais e organizadores do evento corriam ansiosos para contê-los, enquanto o restante do público abafava o protesto gritando “mais quatro anos”.
Em cada um desses momentos, Biden ficou em silêncio, esperou o manifestante em questão ser retirado e retomou seu discurso como se nada tivesse acontecido. A aflição coube a policiais e a assessores do político que se distribuíram pela sala e, até o fim do discurso, continuavam a olhar ansiosamente ao redor para impedir que mais um manifestante o interrompesse o mais rápido possível.
Não é a primeira vez que o presidente enfrenta protestos por seu apoio a Israel no confronto com o grupo terrorista Hamas. Em outras ocasiões, porém, ele respondeu a essas objeções com comentários amigáveis, amenizando o clima -o que não aconteceu nesta terça-feira (23).
Mesmo antes de o comício começar, um grupo pequeno de manifestantes havia se concentrado a alguns metros da entrada do evento, balançando bandeiras da Palestina e uma faixa com a frase “suspenda a ajuda a Israel”.
O embate ilustra o desafio de Biden para conquistar o eleitorado jovem, mais crítico à tradicional aliança entre Washington e Tel Aviv. O problema é que esse é, justamente, um dos públicos-alvo da bandeira do direito ao aborto, que virou prioridade na campanha do presidente.
Além de Biden, também discursaram no comício sua vice, Kamala Harris; o marido dela, Doug Emhoff; e a primeira-dama, Jill Biden. Este foi o primeiro evento de campanha que reuniu ambos os candidatos à Presidência e a Vice-Presidência da chapa do Partido Democrata.
O comício não foi aberto, e apenas pessoas que receberam convites -distribuídos por organizações de defesa ao direito ao aborto e seções regionais do partido– puderam participar. Cada um dos presentes recebeu uma pulseira de uma cor diferente, que definia em qual fileira poderia sentar. Um grupo seleto ainda carregava uma credencial de “convidado especial”.
No fundo do palco, atrás do púlpito, foram posicionadas fileiras de pessoas -muitas delas jovens- carregando cartazes com a frase “Restore Roe” (restaure Roe, em referência à decisão da Suprema Corte que garantia o direito ao aborto e foi derrubada pelo mesmo tribunal em 2022) e “Biden-Harris”.
A imagem de diversidade contrasta com a visão que muitos dos apoiadores de Biden têm em relação à sua campanha.
“Muitas pessoas estão apáticas”, afirma Grace Lintner, 59, de Manassas, sentada em uma das últimas fileiras do auditório. Com uma camiseta do Partido Democrata do condado de Prince William, ao qual se filiou dois meses após a vitória de Donald Trump em 2016, ela diz que vai votar em Biden e que veio ao evento para mostrar seu apoio -mas que está temerosa quanto aos resultados.
“Pessoas em eleições locais já perderam por um voto. Isso pode acontecer com o presidente? Sim. Eu estou preocupada com isso? Sim”, afirma ela.
Questionada se a chapa poderia ter mais chances se fosse encabeçada por Kamala, não por Biden, ela responde que o presidente é popular, emendando que espera que “nada aconteça com Joe”.
“Mas se ele tiver que renunciar ou, Deus me livre, algo acontecer… Quer dizer, Kamala é jovem e tem experiência. Acredito que a chapa está como deveria, e que toda essa conversa sobre a idade de Biden é besteira”, completa.
Sentada algumas fileiras à frente, a professora Jessica Berg, 39, também diz não estar tranquila com as perspectivas eleitorais da chapa.
“Estou muito, muito preocupada. Acho que se tivermos uma participação alta dos eleitores, isso não será um problema, mas estou mais receosa com o que [Trump] incita em sua base, o tipo de violência que isso tem causado”, afirma.
Militante pelo direito ao aborto, ela conta que veio ao comício tanto para defender a bandeira quanto para manifestar seu apoio a Biden -o que vê como uma coisa só.
Dois jovens, animados com a perspectiva de ver o presidente ao vivo, são muito mais claros sobre seu apoio ao democrata, e rejeitam qualquer ideia de que Kamala possa encabeçar a chapa. Ao mesmo tempo, reconhecem que o entusiasmo não é compartilhado por seus colegas.
Estudantes universitários de políticas públicas e estagiários do governo, eles pedem para não ter o nome divulgado. Para ambos, se a eleição fosse hoje, Biden perderia. Mas, complementam, a aposta na bandeira do aborto é o caminho certo para mudar isso até novembro.
Em uma fala anterior aos protestos vistos durante o evento, um dos jovens menciona que a posição de Biden em relação à Palestina pode ser um obstáculo à sua campanha. Esta seria uma das causas da apatia que ele provoca entre seus colegas, opina.
“Biden não é um Barack Obama, mas… Ninguém é”, resume ele.
A campanha levou ao palco Amanda Zurawski, impedida pela legislação do Texas, onde mora, de fazer um aborto após saber da inviabilidade da gravidez. Médicos recomendaram que ela aguardasse, até que ela teve um choque séptico e a situação passou a representar um risco à sua vida.
O procedimento foi realizado. Amanda afirmou que ficou internada três dias e quase morreu. Em seu discurso, ela culpou Donald Trump pela situação.
A posição do republicano sobre o aborto é errática. Às vezes ele se orgulha de ter apontado três juízes conservadores para a Suprema Corte, decisivos para a revogação de Roe vs. Wade, a decisão que amparava o direito à interrupção da gravidez em todo os EUA. Mas ele também já afirmou não ser contra o procedimento, defendendo em vez disso a limitação de tempo de gestação em que ele pode ser realizado.
A inconsistência foi vista como uma oportunidade pela campanha de Biden, que acusa seu provável adversário na eleição de novembro de querer impor uma proibição nacional ao aborto -atualmente, cada estado tem autonomia para regular o tema. A bandeira engaja eleitores independentes e moderados, e mesmo uma parcela significativa dos republicanos é a favor do direito.
A vice-presidente foi escalada como a porta-voz da pauta. Nesta segunda, quando a decisão Roe vs. Wade completaria 51 anos, Kamala fez um discurso no Wisconsin, um estado-pêndulo, como são chamados aqueles que não têm uma tendência clara de votar em um partido ou em outro. Nas próximas semanas, ela viaja pelo país em outros comícios sobre direitos reprodutivos.
FERNANDA PERRIN / Folhapress