FOLHAPRESS – O cineasta francês Claude Chabrol gostava de mostrar personagens comendo um suculento e portentoso pedaço de carne em seus filmes. O prazer de comer dominava trechos de suas tramas de suspense de modo a se misturar com outros prazeres, incluindo os inconfessáveis.
O admirador do cinema de Chabrol lembrará dele nos primeiros minutos de “O Sabor da Vida”, longa francês do vietnamita Tran Anh Hung, diretor que fez enorme sucesso no circuito alternativo dos anos 1990 com “O Cheiro da Papaia Verde”, seu primeiro longa, de 1993.
Neste novo filme, o pedaço de carne é só uma parte do prato. Vemos a arte de cozinhar, de combinar temperos visando o sabor perfeito, a digestão mais tranquila. Está mais próximo de uma espécie de adaptação cinematográfica do MasterChef.
O título brasileiro é uma tradução empobrecida do internacional, “The Taste of Things”, o sabor das coisas. Desvirtua ainda mais o sentido do original, “A Paixão de Dodin Bouffant”, além de ser praticamente o mesmo de um melodrama de Naomi Kawase, de 2015.
O filme de Tran Anh Hung, que lhe rendeu o prêmio de direção no Festival de Cannes do ano passado, é um romance ambientado no século 19, com uma certa secura de sentimentos, ao menos até certo ponto da trama. É como se a paixão estivesse mais no preparo da comida, deixando o título original com uma interessante ambiguidade.
Dodin Bouffant é um chefe de cozinha interpretado por Benoît Magimel cuja principal assistente é uma cozinheira muito talentosa chamada Eugénie, aliás, Juliette Binoche. Ele a ama, sem segredos e há muito tempo, mas ela nunca diz sim aos seus insistentes pedidos de casamento.
Num momento em que Dodin ataca mais uma vez, num jantar ao ar livre, a câmera flutua como um inseto na frente deles, criando constantes modificações na luz. Poderia ser um efeito calcado na afetação, mas de algum modo funciona como um comentário sobre a situação desse homem, na tentativa de cerco ao coração dessa mulher.
Ela o seduz, permite que ele a veja no banho. Mas jamais joga sujo com ele. Chega mesmo a falar que, caso eles se casem, não serão mais tão próximos.
A interpretação de Binoche é impressionante. Há muito tempo a atriz não brilhava assim, com falas trêmulas de timidez e uma graciosa indecisão em alguns gestos. Magimel também arrasa como o homem que ama, respeitosamente, indo até onde ela permite as elipses só permitem que imaginemos esses limites.
Formalmente, o filme está entre a elegância dos movimentos controlados e a câmera na mão. Podemos entender que os momentos de preparação dos pratos exigem um certo rigor, ao passo que a aproximação física entre Dodin e sua paixão Eugénie pede uma direção mais intimista.
Os movimentos elegantes de câmera se sobressaem cada vez mais, por vezes até criando uma leve vertigem. O olhar, felizmente, é apurado o bastante para que esses movimentos façam quase sempre muito sentido, adequados ao que está em jogo.
Em boa parte, temos um filme maneirista. E aqui é necessário, como dizia o crítico francês Alain Bergala, tirar a carga negativa do termo. Maneirismo cinematográfico tende a ser confundido com afetação, mas esta é uma ideia equivocada.
Difícil resumir o maneirismo cinematográfico neste espaço, mas segundo Bergala, no excelente texto “De Certa Maneira”, publicado na Cahiers du Cinéma em abril de 1985, há nos maneiristas a consciência de quem chegou tarde demais para estar nos domínios do clássico ou do moderno hoje, do pós-moderno.
Por chegar depois, as escolhas de direção comentam, criticam ou procuram exacerbar imagens já vistas. Um movimento de câmera torna-se também um ensaio sobre o comportamento da câmera na história do cinema, assim como uma montagem ousada comenta ou parodia as invenções de montagem do cinema moderno, e por aí vai.
Importante que Bergala reconheça a existência do maneirismo em cinema muito antes de seu auge, entre os anos 1970 e 1980. O maneirismo pode também ser identificado como uma alta estilização, seja em que época for encontrado. Por isso sua conotação negativa no meio da cinefilia atual, muito mais ligada aos temas.
“O Sabor da Vida”, com sua alta estilização e seus movimentos de câmera exuberantes, que parecem homenagear Max Ophuls, espécie de avô do maneirismo de câmera, mas também Murnau, o bisavô, e Mizoguchi, mostra que essa escolha não implica necessariamente em erro ou exagero. Tampouco em desleixo na direção do elenco.
Trinta anos depois de “O Cheiro do Papaia Verde”, Tran Anh Hung finalmente o ultrapassa, deixando para trás o percurso irregular que desenvolveu desde seu segundo longa, “O Ciclista”, de 1995, ao mesmo tempo em que permite a Binoche e Magimel um brilho intenso.
O SABOR DA VIDA
Avaliação Muito bom
Quando Estreia nesta quinta (11) nos cinemas
Classificação 14 anos
Elenco Juliette Binoche, Benoît Magimel, Emmanuel Salinger
Produção França, Bélgica, 2023
Direção Tran Anh Hung
SÉRGIO ALPENDRE / Folhapress