SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Entre figuras rabiscadas nas paredes, brota uma planta, nascida de uma fissura nunca remendada. O ser vivo, que já pode ser considerado um arbusto por seu tamanho, convive com dezenas de esculturas, concluídas e inacabadas, pinturas amontoadas e papéis acumulados.
Assim era o ateliê de Alberto Giacometti na rua Hippolyte-Maindron, no bairro parisiense de Montparnasse, no final de sua vida, em 1965. Enquanto é filmado conversando com o poeta Jacques Dupin, ele amassa com seus dedos grossos, mas de toque delicado, o pequeno rosto de uma nova escultura, com movimentos repetitivos e pacientes.
A cabeça cinza-amarronzada de superfície granulada, do tamanho de uma mão e desproporcional em relação ao busto, traz em si o estilo pelo qual o artista ficou conhecido mundialmente a partir de 1948, após sua primeira exposição no MoMa, o Museu de Arte Moderna de Nova York. Dali em diante, Giacometti, que já se dedicava integralmente à arte, passou a produzir sem descanso para mostras nos Estados Unidos, França, Itália e Suíça.
“Essa é uma vida de condenado ao trabalho forçado”, disse, para a televisão francesa, em 1963, um ano após ter um pavilhão inteiro dedicado ao seu trabalho na Bienal de Veneza. Mas ninguém o obrigava. Ele se sentia compelido por uma relação de obsessão e angústia com suas obras, descrita em detalhes minuciosos por Catherine Grenier, diretora da Foundation Giacometti, na biografia que chega ao Brasil pela editora Estação Liberdade.
O livro, lançado há quase uma década na Europa, é o mais completo sobre a vida de Giacometti e foi constituído a partir das inúmeras cartas que o escultor trocou, durante toda sua vida, com os amigos e com a família, que seguiu morando na Suíça italiana local onde ele nasceu e viveu os primeiros anos de sua vida.
Aliás, as memórias da infância vivida em Stampa, comuna idílica aninhada entre duas montanhas, seriam profundamente marcantes. Ali, Giacometti iniciaria seu contato com a arte em um estábulo, transformado pelo seu pai, artista nacionalmente reconhecido, em ateliê.
“Ele não fez representações de paisagens como artista, mas é possível ver, em seus bustos, a aparição das montanhas e das formas minerais”, diz Grenier, que antes de dirigir a fundação dedicada a Giacometti presidiu o Pompidou, em Paris.
Foi no ateliê do pai que ele começou a pintar. “Meigo e gentil, diante de um modelo ele se tornava um tirano”, descreveu seu irmão, Bruno. O realismo não bastava e, como ele próprio confessou em entrevista, passou a ter a impressão de dominar a natureza.
Mas essa segurança não durou muito. Em uma viagem à Itália em 1920, apesar de o jovem artista se encantar com o maneirismo de Tintoretto e com o pavilhão soviético da Bienal de Veneza dedicado a Alexander Archipenko, sua admiração se volta à arte egípcia.
“Aquelas, sim, são verdadeiras esculturas. Eles retiram o que é necessário em cada figura”, escreveu, à época, em uma carta para a mãe. Dessa admiração nasceu uma obsessão que acompanharia Giacometti, de forma palpitante, até o fim da vida, caracterizada pela busca da representação da essência humana.
Foi na Itália também que Giacometti começou a frequentar os bordéis e trocou as roupas de camponês por um paletó, camisa e gravata, vestuário acompanhado sempre por um cigarro entre os dedos e o cabelo abundante despenteado, hábitos que manteve nas décadas seguintes.
“Creio que a coisa mais difícil é extrair de um modelo uma figura satisfatória, porque a cada dia vemos o modelo de uma maneira diferente”, escreveu, já em Paris, em 1922, inscrito no ateliê de Antoine Bourdelle, onde escolhe a escultura como sua atividade principal enquanto artista.
Influenciado pela efervescência artística parisiense, Giacometti começou a produzir esculturas que brincavam com a ambivalência das formas e a multiplicidade de referências para criar imagens de duplo sentido, materializado figuras que pareciam ter sido originadas no inconsciente e, por vezes, carregadas emocionalmente.
Não demorou para que o artista chamasse a atenção dos surrealistas e participasse das exposições do movimento pelo mundo. Em 1930, André Breton ficou encantado com a escultura “Boule Suspendue”, exibida na Pierre Galerie, que Salvador Dalí chama de protótipo dos “objetos de funcionamento simbólico”.
Uma bola com um entalhe que a parte delicadamente ao meio roça em uma estrutura que lembra a lua crescente. Apesar de fazer referência a um relógio astronômico que observava na casa dos pais, em Stampa, era inegável o cunho sexual e até violento da escultura.
A partir daquele momento, Giacometti integrou o movimento surrealista francês, enquanto ganhava a vida produzindo objetos decorativos de luxo para Jean Michel Frank e se entusiasmava com ideias socialistas nos cafés parisienses, ao lado de artistas como George Bataille e Louis Aragon.
“Le Palais à 4 Heures du Matin”, ou o palácio às quatro da manhã, foi o ponto alto de sua passagem pelo surrealismo, às vésperas de ser expulso do movimento. A obra, criada com finos palitos de madeira, em que a figura da mãe lembra a peça da rainha de um jogo de xadrez, parece o cenário de um teatro.
“Giacometti sentia falta da relação direta com o modelo e com a realidade, e isso não podia ser aceito pelos surrealistas, que prezavam pela fantasia e pelo simbolismo”, diz Grenier. No final de 1934, ele afirmaria que tudo que havia feito até aquele momento era masturbação e que seu único objetivo era fazer uma cabeça humana.
A obsessão com o fim da vida, tema que passou a assombrá-lo após a morte de seu pai, o que se agravou por causa das imagens de corpos dilacerados pelas ruas durante a segunda guerra, o aproximaram de Pablo Picasso, do dramaturgo Samuel Beckett e do existencialismo do filósofo Jean-Paul Sartre.
Dalí em diante, passou a fazer pequenas figuras humanas em gesso, que com o tempo se alongaram e fizeram surgir “La Nuit”, ou a noite, em que a silhueta esquálida de uma mulher anda sobre uma plataforma e “tateia a escuridão”, como ele próprio descreveu. Ou “LHomme Qui Marche” o homem que marcha, em que um homem magro e esguio caminha.
Entre apalpações e golpes de canivete, Giacometti passou a se dedicar por completo, nas décadas seguintes, a busca pelo que ele acreditava ser o universalismo da representação, através de longas sessões em que fazia sua esposa, Annette, seu irmão, Diego, e o amigo e filósofo Isaku Yanaihara posarem horas a fio como seus modelos, sentados sobre uma cadeira de palha no ateliê. Não era incomum que o artista destruísse as criações que não o satisfazia.
Ao ser interrogado sobre seu método por um jornalista, em 1963, ele disse que seu trabalho não estava relacionado à paciência, mas à mania. Era a perturbação de alguém que percebeu a insuficiência dos códigos clássicos de representação para os tempos modernos, segundo Grenier.
Apesar de muitas obras de jovens artistas extrapolarem os limites entre realidade e abstracionismo, para Grenier, que organizou mais de 30 exibições de arte moderna e contemporânea no Pompidou, o verdadeiro legado de Giacometti é a sua perseverança.
“Ele sempre exprimia que tinha dúvidas sobre o que fazia. Nada era bom o suficiente para ele e, apesar disso, ele ia diariamente ao ateliê. Muitos artistas buscam a fama e o dinheiro. Ele tinha uma obsessão por sua arte”, diz.
Era uma fixação que o próprio Giacometti não tinha intenção de esconder. “Examino um rosto, cada dia um pouco mais. Avanço. Sei muito bem que o segredo da vida recua progressivamente, que não o alcançarei jamais”, diz, em uma entrevista gravada em 1963 com o tema “diálogo com a morte”. “Mas a grande aventura é surgir algo de desconhecido a cada dia no mesmo rosto.”
ALBERTO GIACOMETTI
Preço R$ 98 (368 págs.)
Autoria Catherine Grenier
Editora Estação Liberdade
Tradução Mauro Pinheiro
ALESSANDRA MONTERASTELLI / Folhapress