FOLHAPRESS – “Olindina, chame Madalena para tocar o pandeiro que o filho de Décio não tem compasso.”
A frase de Orestes Valença se referia a seu neto, que tentava, batucando no instrumento, participar do sarau promovido pelo avô. Musicalmente, a sentença não poderia estar mais errada, como provou a história do menino, Alceu Valença.
Sem saber, porém, Orestes acertava em algo maior. Na forma como fez as raízes nordestinas conversarem com a vanguarda eletrificada do pop-rock, na defesa de liberdade frente às gravadoras, na verborragia anárquica e hipnótica, no posicionamento político coerente e apartidário, na maneira como faz do palco seu domínio com a mesma autoridade com que um artista de rua afirma uma ribalta num naco de calçada, Alceu não se limita ao compasso, a um movimento previsto e esperado.
Como definiu sua tia ao inscrever o garoto num concurso de talentos mirins de uma rádio de sua cidade natal, São Bento do Una: “Se canta, não sei não. Mas é doidinho que só”.
Todo esse painel aparece em “Pelas Ruas que Andei Uma Biografia de Alceu Valença”, de Julio Moura, que faz uma cobertura detalhada da trajetória do pernambucano.
Estão lá desde a herança familiar da musicalidade e da inventividade expressa na poesia e no humor popular do agreste até as caminhadas que Alceu fazia em casa durante a quarentena em 2020, subindo e descendo escadas para cumprir sua cota diária de 10 mil passos.
Entre um ponto e outro, se mostram a construção de sua carreira artística; a formulação de seu pensamento sobre música popular e o país; seus amores; suas prisões durante a ditadura; os bastidores de criação de suas canções, muitas trazendo curiosidades autobiográficas; e algumas desavenças, entre elas um desentendimento com Zé Ramalho durante um show e uma tensão com o então ministro Gilberto Gil, de quem Alceu cobrava políticas públicas em defesa dos músicos brasileiros e contra a pirataria.
“Pelas Ruas que Andei” é eficaz em mapear como se moldaram a pessoa e o artista, de Pernambuco ao Rio de Janeiro, passando pela França e Estados Unidos, onde ele esteve em reuniões dos Panteras Negras e no point beatnik de Greenwich Village frequentado por Bob Dylan que o brasileiro então não conhecia.
A biografia foi escrita por Moura a partir de material de pesquisa empreendida por Patrícia Pamplona e da própria convivência do autor com Alceu ele é assessor de imprensa do músico desde 2009.
A proximidade entre biógrafo e biografado afeta o livro, como era de se esperar. Mas isso se dá menos por eventuais omissões que protegeriam Alceu, afinal insinuam-se nas citadas desavenças uma personalidade difícil, apesar de estar sempre sob um olhar, em alguma medida, suavizante.
A relação entre autor e personagem se revela prejudicial à narrativa mais pelo excesso do que pela falta. O encanto e o compromisso com Alceu fazem com que o livro se estenda por quase 600 páginas, prendendo-se a pormenores que diluem a força do biografado.
Há histórias banais em meio às cativantes e, em certos momentos, a minuciosa pesquisa, que dá consistência ao livro, se presta a descrições extensas dos circuitos de shows e mesmo de comícios do artista. A intenção de contextualização por vezes se perde em digressão, como quando expõe meandros do Plano Cruzado.
O balanço, porém, é positivo, seja para os fãs ou para quem procura entender um tanto dos debates estéticos que atravessaram e atravessam a MPB: o forró eletrônico versus o universitário; a discussão sobre o que é “música regional”; a própria narrativa que põe bossa nova e tropicália num papel central na música.
Em meio aos grandes arcos, temos miudezas como o cantor negociando com Seu Sete num terreiro, caso a entidade garantisse a ele a vitória no Festival Internacional da Canção; o músico Jackson do Pandeiro sugerindo que o verbo “explode” fosse substituído por “pipoca” em “Coração Bobo”; Gal Costa desprezando “Andar, Andar” (“Eu pedi uma música bonita”, ela justificou); o disco perdido “Forrock”…
Enfim, histórias que brotam de uma vida sem compasso, mas feita de compassos.
PELAS RUAS QUE ANDEI: UMA BIOGRAFIA DE ALCEU VALENÇA
Quando Lançamento em 27 de julho no Itaú Cultural, em São Paulo
Preço R$ 70 (592 págs.)
Autoria Julio Moura
Editora Cepe
LEONARDO LICHOTE / Folhapress