SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Atenção. Este filme é bastante violento. Divertido, esperto, bem realizado e com humor, até, mas não dá para ver com crianças na sala. E foi lançado dois anos atrás nos Estados Unidos, mas, por um desses mistérios do mundo dos canais de streaming, chegou só no final de 2023 na Netflix Brasil.
Com Bob Odenkirk no papel principal, o tal “Nobody” do título original –ninguém, em tradução livre, e não anônimo, como foi chamado em português, afinal o personagem tem nome, Hutch Mansell– o filme dura exatos 93 minutos. O que é um certo alívio em tempos de histórias esticadas ao máximo para serem contadas em forma de série, o que deve beneficiar muita gente, mas certamente não o espectador.
Em “Anônimo”, Odenkirk, um comediante que se transformou em ator dramático relevante com o personagem Saul Goodman na série-fenômeno “Breaking Bad” e o spin-of “Better Call Saul”, interpreta um herói de ação de meia-idade sob a ótica caótica do diretor Ilya Naishuller, com roteiro de Derek Kolstad, criador do personagem John Wick.
O filme tem várias coisas em comum com o primeiro John Wick, inclusive a premissa original de um cara com passado violento que tenta levar uma vida banal mas volta à ativa depois de provocado. Até um filhote aparece. Em “John Wick”, de 2014, era um cachorrinho, em “Anônimo”, um gatinho, mas com papel menor. Afinal, Hutch Mansell é um pai de família, não um solitário, como era John Wick.
Este é um filme de ação e aventura que não tem a menor preocupação com a verossimilhança, mas total compromisso com o entretenimento. Você não vai se pegar entediado entre uma cena e outra pensando no que precisa comprar no supermercado. O absurdo do roteiro é proposital, e o exotismo –levado ao extremo com o vilão da história, um mafioso russo com pretensões artísticas– é calculado para aumentar o volume do divertimento.
É um longa-metragem muito bem-feito, mas que parece não se levar 100% a sério. E, o que é melhor ainda, até onde sabemos não há planos de transformá-lo em uma franquia, outro alívio.
Hutch Mansell, o protagonista, é apresentado ao público algemado, todo machucado e em uma sala de interrogatório, carregando algumas coisas que a maioria das pessoas não conseguiria levar furtivamente para uma delegacia. Um detetive pergunta quem ele é, e ele responde: “ninguém”. Não “anônimo”. “Ninguém”. Daí o título em inglês.
O filme comprova isso com flashbacks do dia a dia de Hutch, em que cada ritual matinal é um fracasso pessoal que o leva a um trabalho tedioso em que encara uma planilha. Hutch realmente parece um zé-ninguém. Sua mulher, Becca, papel de Connie Nielsen, dorme com uma barreira de almofadas entre os dois, e só dirige a palavra ao marido quando ele não consegue levar o lixo para a calçada a tempo de alcançar o caminhão.
Uma noite, dois ladrões atrapalhados invadem a casa dos Mansell, mas vão embora sem quase nada, e os dois filhos do casal testemunham o pai optar por não defender a família, apesar de ter tido chance. O filho mais velho, que leva um soco no olho de um dos bandidos, passa a ser mais um na casa a olhar para Hutch com desprezo.
Em uma conversa posterior via rádio com seu irmão adotivo, que no começo parece ser fruto da imaginação do personagem, Hutch tenta explicar por que não acertou o invasor com seu taco de golfe e diz que não havia balas na arma do bandido. Mas como um homem tão banal poderia saber isso?
Pois é, não tendo sido sempre assim. Hutch tem um passado muito diferente de sua versão atual, e que é apresentado aos poucos ao longo da história. Ele está disposto a superar o incidente, mas acaba perdendo o controle quando sua filha caçula conta que os ladrões levaram a pulseira de gatinho que ela tanto adora.
A partir daí é tiro, porrada e bomba. Hutch é que nem alcoólatra quando tem uma recaída daquelas. Ele escolheu uma vida pacata e familiar, segurança e conforto, mas seu sangue ferve mesmo quando persegue e é perseguido, quando sua vida corre risco e quando se dispõe a matar quem entrar no seu caminho.
Ele age basicamente sozinho, mas, na hora do aperto, conta com seu pai, David Mansell, um idoso que vive em um asilo e é interpretado por Christopher Lloyd, o Doc da trilogia “De Volta Para o Futuro”, e com seu irmão, Harry Mansell, personagem de RZA, fundador do grupo de hip-hop Wu-Tang Clan.
No final das contas, o que vai fazer este filme ficar na memória, mais do que a direção de arte e as câmeras exuberantes, que têm até piadas visuais milimetricamente cronometradas, é a trilha sonora cheia de malandragem, com clássicos pop maravilhosamente bem selecionados, que complementam, comentam e transformam cenas violentas em puro deleite. O que não é pouca coisa.
ANÔNIMO
Produção: EUA, 2023
Avaliação: Muito bom
TETÉ RIBEIRO / Folhapress