BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Referência de política social do Brasil, o Bolsa Família completa 20 anos nesta sexta-feira (20) mantendo a marca já enraizada no imaginário da população, mas com peso e alcance bem diferentes do programa lançado em 2003.
Após ter sido brevemente rebatizado de Auxílio Brasil, o Bolsa resgatou seu nome original e hoje transfere R$ 168 bilhões a 21,5 milhões de famílias atendidas quase cinco vezes mais recursos no Orçamento para um público 7 milhões maior do que antes da pandemia de Covid-19.
Com duas décadas de transferências de renda, o programa coleciona um legado de famílias que conseguiram sair da pobreza, mas também convive com o desafio de proporcionar, em um contexto pós-pandemia e de retorno do Brasil ao chamado Mapa da Fome, uma melhora de vida duradoura para brasileiros que ainda estão nas camadas mais vulneráveis e não alcançaram sua emancipação.
Em diferentes cantos do país, há histórias de beneficiários do programa que relatam conquistas ou que ainda alimentam esperança de alcançá-las.
Andson Brasil, 31, foi beneficiado ainda na adolescência, quando morava com a família em Capanema (PA), a 165 km de Belém. Ele se lembra de ter entre 13 e 14 anos quando sua residência passou a receber as transferências do programa, por um período que durou aproximadamente dois anos.
“Meu padrasto era aposentado e tinha um salário baixo, minha mãe era do lar. O dinheiro complementou [a renda] para comprar materiais escolares, comida”, diz.
Sem a ajuda, Brasil acredita que a mãe, ele ou seus dois irmãos mais novos teriam tido de fazer bicos para incrementar a renda da casa. O benefício permitiu que os três menores continuassem estudando.
Aos 19 anos, ele se mudou para São Paulo, onde se formou em administração e gestão pública e mora até hoje. Ele conta que o irmão mais novo cursou engenharia da computação na UFPA (Universidade Federal do Pará), depois de ser aprovado em cinco instituições. A irmã do meio é engenheira ambiental.
Emocionado, ele relembra o passado de dificuldades que conseguiu deixar para trás. “A gente pegava um pacote de bolacha e eram três [unidades] para cada um. Hoje em dia, consigo comprar uma inteira e comer mais à vontade.”
Brasil trabalha atualmente do outro lado do “balcão” do Bolsa Família. Ele é instrutor do Cadastro Único de programas sociais, dando cursos a agentes estaduais e municipais sobre como operar a plataforma que um dia foi porta de entrada para sua família.
“Estou capacitando pessoas para que outras possam ser beneficiadas. É muito legal essa trajetória, essa reflexão”, afirma.
Raquel Lima Clemente, moradora de Viana (ES), vivenciou realidade semelhante. Mãe de quatro filhos, ela se viu em dificuldades financeiras e precisou pedir acesso ao benefício ainda nos primeiros anos do programa, como forma de evitar tirar as crianças da escola para ajudar na renda da família.
“[O benefício] foi num momento em que eu não podia trabalhar por gravidez de risco, não podia fazer bico, não podia subir morro. Eu me via presa, precisando da parte financeira e sem ter o que fazer para conseguir”, relembra.
“Eu comecei a trabalhar com 12 anos e não achei justo, não quis repetir isso com meus filhos”, diz ela, que voltou a cursar o ensino médio em 2010, quando era beneficiária do Bolsa Família e já tinha mais de 30 anos. Ela prefere não divulgar sua idade atual.
Hoje, dois de seus filhos são engenheiros, enquanto ela realizou o sonho de se tornar psicóloga.
Atualmente, trabalha com carteira assinada e faz atendimentos voluntários, mas já atuou também em centros de assistência que operam o Cadastro Único.
“Cada vez que eu atendia uma demanda de uma pessoa, eu pensava: ‘Nossa, um dia eu já estive nessa posição’. E às vezes eu até comentava, tentava falar que tem como ser diferente”, conta.
Marcilene Cacau Cary Cry, 24, ainda sonha em avançar nos estudos e melhorar suas condições de vida. Membro da etnia Gavião Pykopjê, ela vive na Terra Indígena Governador, no município de Amarante (MA), a 636 km da capital São Luís.
Ela ingressou no programa ainda criança, como dependente dos pais, e fez cadastro próprio aos 16 anos. Hoje, segue sendo beneficiária junto com o marido e dois filhos pequenos, de 10 e 6 anos.
Na aldeia, a água disponível vem por carros-pipa. Parte dos alimentos consumidos é cultivada pelos próprios habitantes. Oportunidades locais de trabalho, só como professor ou técnico de enfermagem. Alguns poucos conseguem emprego na cidade.
Para Marcilene, a renda do Bolsa Família complementa os ganhos obtidos com a venda de artesanato e o trabalho temporário do marido no combate a incêndios florestais. Porém, faltam condições de sair da terra indígena para frequentar a universidade.
“Minha vontade é entrar numa faculdade para estudar e me preparar mais. Direito e antropologia, esses dois são o meu sonho. Mas o que a gente precisa para estudar aqui é muito difícil. O ideal é conseguir lá fora [em outro estado], se preparar e voltar para ajudar nosso povo”, diz ela, que afirma não saber detalhes e oportunidades de como ela poderia alcançar seu objetivo.
As histórias são um retrato vivo de uma estatística já mapeada em um estudo do IMDS (Instituto Mobilidade e Desenvolvimento Social), que rastreou a realidade dos “filhos do Bolsa Família” 14 anos depois.
A entidade analisou a trajetória de beneficiários que, em 2005, tinham entre 7 e 16 anos e estavam no programa social e em que condições eles chegaram a 2019.
Para isso, o IMDS obteve autorização do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome para acessar dados de identificação dos beneficiários.
Os resultados mostram que 64,1% das crianças e adolescentes saíram do Cadastro Único de programas sociais no período, um indício de que boa parte das famílias conseguiu melhorar suas condições de vida.
A outra face da mesma moeda é que 34,4% continuaram na base de dados do cadastro, 20,4% deles ainda como beneficiários do Bolsa Família. São crianças e adolescentes de 2005 que provavelmente vão formar famílias dependentes da assistência social do Estado.
O diretor de pesquisas do IMDS, Sergio Guimarães Ferreira, ressalta que os dados mostram uma realidade pré-pandemia, e algumas das famílias podem ter voltado a enfrentar dificuldades algo que ainda será alvo de nova investigação pelo instituto.
De forma geral, as chances de superação da pobreza e de ascensão social estão ligadas a fatores como gênero, raça, escolaridade e condições socioeconômicas da região em que se vive.
Segundo o IMDS, a permanência de mulheres negras no Bolsa Família ao longo dos anos, por exemplo, foi bem maior do que a de homens brancos.
Beneficiários que conseguiram se dedicar aos estudos e concluir o ensino médio ou a faculdade tinham mais chances de estar fora da base de dados de programas sociais em 2019.
Estados com melhores indicadores socioeconômicos registram uma taxa de saída do Cadastro Único maior. Mas mesmo nas regiões Norte e Nordeste, onde os resultados são mais tímidos, há “ilhas de emancipação” em cidades em que a qualidade da educação é melhor.
“É um resultado esperado. A mobilidade social está muito condicionada às condições iniciais de vida. Talvez essas decisões sejam conjuntamente determinadas, evasão escolar, inclusão produtiva. Às vezes a falta de saneamento básico não dá condições de estudar. A pobreza é multidimensional”, diz Ferreira.
A pesquisa também mostra que 44,7% dos beneficiários de 2005 tiveram, entre 2015 e 2019, algum tipo de vínculo formal de trabalho indício de que conseguiram melhorar de posição na pirâmide social.
No entanto, Ferreira alerta que não se trata de uma “inserção produtiva sistêmica”. “Tem muitas entradas e saídas [do mercado de trabalho]. Tem um ciclo formal e informal que também é indicativo de vulnerabilidade”, afirma.
Segundo ele, os resultados do Bolsa Família provam que o Estado é capaz de transferir renda às famílias e ajudá-las na superação imediata da pobreza, mas ainda não conseguiu atacar as outras frentes do chamado “risco social” famílias que saíram da pobreza, mas estão em situação vulnerável e podem voltar a viver sob condições piores.
“A análise diagnóstica exige um rol de informações, uma investigação específica. Precisa identificar as famílias e entender a situação. Tem criança fora da escola, fora de creche? Por quê? A mesma coisa para adultos. São infinitas questões”, diz o pesquisador.
“Isso exige qualificação e até mudanças de currículo nas faculdades formadoras. Dependendo da maneira que se faz isso, pode ter um impacto maior até do que a transferência.”
Especialistas defendem uma atuação customizada dos Cras (Centros de Referência de Assistência Social), para fornecer atendimento múltiplo às famílias, com oferta não só de transferências de renda, mas também de qualificação e formação empreendedora.
Recentemente, o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vem tentando retomar os investimentos na rede de assistência social, após sucessivos cortes de recursos no governo Jair Bolsonaro (PL) terem contribuído para a deterioração dos serviços.
No fim de agosto, o atual governo lançou o programa Brasil Sem Fome, com foco principal na redução da pobreza, mas também na integração de diferentes políticas sociais.
“Temos uma história que comprovadamente teve resultados. Mesmo quem está na pobreza teve uma melhora na escolaridade, o que abre portas para oportunidades”, diz o ministro Wellington Dias (Desenvolvimento Social).
“Olhando para frente, temos metas a cumprir. Tirar o Brasil do Mapa da Fome, chegar a quem ainda não chegamos, e ao mesmo tempo garantir que essas pessoas tenham acesso a programas de qualificação e assistência social”, afirma.
IDIANA TOMAZELLI / Folhapress