WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) – Replicando a estratégia de grupos de direita latino-americanos radicados nos EUA, bolsonaristas vêm recorrendo a Washington para denunciar uma suposta violação de direitos humanos sofrida no Brasil, alegando perseguição política e censura.
Para especialistas, a articulação busca preparar o terreno para um eventual novo governo Trump e respaldar uma candidatura na eleição de 2026.
O exemplo mais recente desses esforços foi a tentativa de emplacar uma audiência intitulada “Brasil: Uma crise da democracia, da liberdade e do Estado de Direito?” na Comissão de Direitos Humanos do Congresso americano.
O evento, previsto para ocorrer na última terça-feira (12), acabou sendo barrado pela ala democrata do órgão, uma ação inusual dada a existência de um acordo de cavalheiros entre os partidos para não bloquear propostas de audiências um do outro.
A comissão é copresidida por dois deputados, um de cada partido: o democrata Jim McGovern e o republicano Chris Smith, com quem uma comitiva brasileira liderada pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) se encontrou em novembro do ano passado.
À reportagem McGovern diz que não vê o debate como uma questão de direitos humanos. “Parece que foi desenhada para dar a ele [Eduardo Bolsonaro] cobertura e legitimidade, e esse não é o propósito da nossa comissão”, afirmou.
Em resposta ao bloqueio, Smith promoveu uma conferência do lado de fora do Capitólio no mesmo dia em que aconteceria a audiência.
Em seu discurso, disse que “o Brasil está indo na direção da anarquia e do Estado pelo direito em que o direito é usado seletivamente como um instrumento de poder político para processar pessoas como forma de silenciar a oposição”.
O deputado americano, que preside também a subcomissão de Saúde Global, Direitos Humanos Globais e Organizações Internacionais, prometeu realizar uma nova audiência sobre direitos humanos no Brasil e disse estar preparando um projeto de lei para “responsabilizar o governo brasileiro por seus abusos”.
Participaram da conferência os deputados Eduardo Bolsonaro, Gustavo Gayer (PL-GO) e Marcel Van Hattem (Novo-RS) e o ex-apresentador da Jovem Pan Paulo Figueiredo, neto do ex-presidente João Batista Figueiredo (ditadura militar) e acusado pela Polícia Federal de ajudar integrantes do governo Bolsonaro a planejarem um golpe no Brasil em 2022.
Um analista da Heritage Foundation, um think tank conservador americano, completou o quadro.
A deputada Bia Kicis (PL-DF) e Allan dos Santos, fundador do site bolsonarista Terça Livre, acompanharam o grupo, mas não discursaram.
“Sempre alertei em meus discursos no Congresso [do Brasil] sobre os perigos de meu país se tornar uma Cuba ou Venezuela, com seus campos de concentração”, disse Eduardo Bolsonaro.
“Hoje, infelizmente, vivo em meu próprio filme sobre o gulag. Meu pai agora é perseguido e difamado das mais variadas formas, e como em qualquer tirania, o limite do ridículo não existe mais.”
O filho do ex-presidente esteve em Washington no fim de fevereiro para participar da conferência conservadora CPAC.
No discurso, ele se dirigiu diretamente aos congressistas americanos, pedindo a realização de uma audiência para “expor essa tirania”, em referência a uma suposta perseguição sofrida pelo governo Lula (PT) e pelo Judiciário brasileiro.
Apesar do bloqueio democrata, Figueiredo diz à Folha que a audiência vai acontecer e vê na ação do partido de Joe Biden mais uma prova da suposta perseguição da esquerda, acusando McGovern de ter laços com Cuba, as Farc e o bilionário George Soros.
“Republicanos têm a maioria e, portanto, é inevitável. Faremos em outros parlamentos pelo mundo. No da Flórida, no de Portugal, no Parlamento Europeu e outros”, disse Figueiredo por email.
No mês passado, ele e Eduardo foram entrevistados pelo ex-âncora da Fox News Tucker Carlson, um aliado de Donald Trump.
Na descrição do episódio, o jornalista americano diz que o “governo Biden ajudou a instalar um governo pró-China no Brasil, que imediatamente calou a mídia de oposição e começou a prender dissidentes”. “Aqui estão duas das suas vítimas”, encerra o texto.
Além da imprensa conservadora e o Congresso americanos, bolsonaristas também têm mirado a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Em novembro, alguns parlamentares brasileiros se encontraram com o relator especial para Liberdade de Expressão, Pedro Vaca Villarreal, e técnicos do secretariado executivo, com o objetivo de denunciar uma suposta perseguição.
Para o ex-secretário-executivo da CIDH e atual diretor do Washington Brazil Office, Paulo Abrão, há uma estratégia clara bolsonarista de usar um vocabulário de direitos humanos para emplacar nos EUA uma narrativa de perseguição emulando outras direitas latino-americanas, como a cubana e a venezuelana.
Esses grupos tiveram êxito nessa pressão, que contribuiu para medidas como sanções pelos EUA e reprimendas de organismos internacionais aos governos dos seus países de origem.
“A extrema direita brasileira se aproximou da extrema direita latino-americana durante os governos Trump e Bolsonaro. O território dessa aproximação foi a Flórida. Ali ela encontrou uma certa expertise e começou a usar o mesmo manual de ativismo usado legitimamente por esses grupos para resistir à ditadura em seus países”, diz Abrão.
“O que enfraquece essa estratégia é a artificialidade do salto que os bolsonaristas tentam criar na equiparação dessas realidades”, completa.
No longo prazo, o objetivo é preparar o terreno para as eleições de 2026, articulando aliados internacionais e respaldo para uma candidatura bolsonarista, afirma ele.
Além disso, um eventual governo Trump, caso o empresário saia vitorioso da eleição em novembro, também pode abraçar essa narrativa contra o Brasil, avalia.
Algumas medidas concretas poderiam ser, por exemplo, aprovação de sanções a Brasília previstas no Orçamento enviado ao Congresso.
“Foi isso o que os grupos desses outros países conquistaram ao crescerem o tom da crítica, ganharem pronunciamentos dos organismos internacionais, como OEA e CIDH”, analisa Abrão.
Para o cientista político da FGV (Fundação Getulio Vargas) Guilherme Casarões, especialista em política externa e movimentos de direita, houve um amadurecimento dessa estratégia. “Pela primeira vez, estamos vendo uma conexão transnacional no âmbito legislativo mais intensa”, diz.
Ele discerne dois planos com esses esforços. O de longo prazo seria articular a diáspora brasileira nos EUA, como outras direitas latino-americanas fizeram. No curto prazo, a ideia é desqualificar o governo Lula e, assim, afetar as relações entre Brasil e EUA.
Casarões diz ainda que não desconsidera um terceiro objetivo: instigar uma pressão americana para garantir a elegibilidade de Bolsonaro em 2026. “Você pode criar, valendo-se de uma legitimidade conferida pelos EUA, uma situação de pressão, sobretudo no TSE, que o ajude a reverter sua inelegibilidade”, diz.
FERNANDA PERRIN / Folhapress