SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – As principais pautas usadas por bolsonaristas para levar as pessoas às ruas neste domingo (10) contra a indicação de Flávio Dino ao STF (Supremo Tribunal Federal) expõem contradições desse campo político em relação a direitos humanos e democracia, além de uma visão controversa sobre os limites da liberdade de expressão.
O posicionamento crítico do grupo à decisão do STF sobre liberdade de imprensa também se contrapõe aos seguidos ataques a jornalistas ao longo do governo Bolsonaro.
“Nós, deputados de direita, pessoas que estamos lutando pelas nossas liberdades, precisamos do povo nas ruas”, afirma o deputado federal Gustavo Gayer (PL-GO), em vídeo gravado por diferentes parlamentares do núcleo bolsonarista para divulgar a manifestação.
O senador Magno Malta (PL-ES) diz que a ida às ruas é “pela justiça, pela nossa democracia”. Participam da convocação, entre outros, os deputados Carla Zambelli (PL-SP), Mário Frias (PL-SP) e Nikolas Ferreira (PL-MG).
Os atos deste dia 10 também estão sendo divulgados também como em memória de Cleriston Pereira da Cunha, réu pelos ataques de 8 de janeiro que morreu no Complexo Penitenciário da Papuda.
Bolsonaro, que já tratou temas relacionados a direitos humanos como “direitos de bandidos” e “esterco da vagabundagem”, apoiou a convocação de ato em homenagem a Cleriston há duas semanas.
O senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS), por sua vez, escreveu em rede social que a morte de Cleriston “materializa o absurdo da ausência do devido processo legal” e defendeu “uma investigação minuciosa para que esse fato gravíssimo seja esclarecido”.
No ano passado, à época vice-presidente na gestão Bolsonaro, Mourão riu ao ser questionado sobre a apuração de áudios de sessões do STM (Superior Tribunal Militar) durante a ditadura. “Apurar o quê? Os caras já morreram tudo, pô”, afirmou. “Vai trazer os caras do túmulo de volta lá?”
Gabriel Sampaio, diretor na Conectas, avalia que, mesmo diante de contradições, toda posição a favor dos direitos humanos é positiva e que é preciso trabalhar, enquanto sociedade, para que essa pauta seja defendida de uma perspectiva universal, e não apenas para certos grupos.
“Essa narrativa [a favor dos direitos humanos] precisa ser resgatada e precisa pautar todas as forças políticas da sociedade comprometidas com um nível civilizatório mínimo de sobrevivência”, diz ele.
Fernanda Martins, antropóloga e diretora no InternetLab, considera que são colocados em disputa no cenário recente os próprios significados de democracia, direitos humanos e liberdade de expressão.
“Você vê o seu opositor defendendo coisas completamente distintas, usando os mesmos termos que você estava usando. Isso gera uma confusão.”
Ao longo do governo Bolsonaro, por exemplo, apesar das reiteradas ameaças golpistas, o discurso entre os políticos de seu entorno e do próprio ex-presidente Jair Bolsonaro era o de que ele agia apenas “dentro das quatro linhas da Constituição”.
Na defesa da liberdade de expressão, um dos casos de maior relevo na direita foi a condenação de Daniel Silveira pelo Supremo.
Dias depois de Bolsonaro ter agraciado o então deputado com perdão da pena, foi realizado no Palácio do Planalto um “ato cívico pela liberdade de expressão”, com insinuações golpistas contra o STF e as eleições.
No fim de novembro de 2022, quase um mês após o segundo turno, quando os atos contra o resultado eleitoral se espalharam pelo país, parlamentares bolsonaristas promoveram uma audiência em comissão do Senado marcada por questionamentos à lisura da eleição, incluindo falas em defesa de golpe militar.
Pessoas acampadas em frente ao quartel-general do Exército em Brasília foram denunciadas por incitação aos atos antidemocráticos, motivo pelo qual Bolsonaro também é formalmente investigado.
Também em temas relacionados a pautas raciais, de costumes e gênero, as falas de parte do bolsonarismo são por vezes alvo de investigação por adentrarem na seara criminal.
Nikolas Ferreira, por exemplo, ironizou a existência de mulheres transexuais em discurso na tribuna da Câmara dos Deputados no Dia da Mulher.
Na última semana, o TJ-MG (Tribunal de Justiça de Minas Gerais) negou recurso e confirmou a condenação do parlamentar.
Episódios como esses são consequência do desencontro entre o que bolsonaristas dizem ser liberdade de expressão com a legislação.
Isso porque no Brasil, como em todos os outros países em maior ou menor grau, a liberdade de expressão não é absoluta.
Racismo e injúria racial estão entre os exemplos de condutas tipificadas como crimes, além de discriminação por religião ou procedência. A veiculação de propaganda nazista está prevista na mesma lei.
No caso da homofobia e da transfobia, decisão do STF equiparou as condutas ao crime de racismo até que o Congresso aprove uma legislação sobre o tema.
Paulo José Lara, codiretor executivo da organização da Artigo 19, aponta o que vê como uma distorção do conceito de liberdade de expressão por quem ocupa posições de poder.
“Os direitos humanos nascem para proteger de forma sólida aqueles mais vulneráveis”, afirma. Por isso, para ele, é contraditório usar a bandeira do livre discurso para atacar grupos como a população LGBTQIA+.
Lara diferencia ainda a dimensão individual da liberdade de expressão, ou seja, o direito de poder falar, com a dimensão coletiva, na qual ela deve ser exercida junto com outros direitos.
Ponderar a relevância de diferentes direitos que por vezes podem colidir, como o de expressão e o da honra, é justamente o que fazem juízes cotidianamente, ao decidir casos, por exemplo, de denúncias por injúria, calúnia e difamação.
Ao se colocarem como porta-vozes da bandeira da liberdade de expressão, bolsonaristas também criticaram a decisão do STF que abriu espaço à responsabilização de veículos jornalísticos por falas de entrevistados.
“Daqui para a frente, a imprensa não irá mais trazer algum entrevistado cuja fala não seja absolutamente alinhada com o Ministério da Verdade, porque é isso que nós estamos vivendo” afirmou a deputada Bia Kicis (PL-DF).
A expressão Ministério da Verdade é uma referência à obra “1984”, de George Orwell, distopia sobre governo autoritário que possui órgão responsável pela falsificação e manipulação de informações com objetivo de controlar a narrativa oficial. Bolsonaristas costumam fazer menções frequentes à expressão, que usaram, por exemplo, para se referir à proposta de uma agência reguladora para as plataformas digitais no âmbito do PL das Fake News.
As declarações de Bia Kicis e de outros bolsonaristas contrastam com a postura em relação à imprensa durante o mandato do ex-presidente.
Apenas no ano eleitoral de 2022, Bolsonaro e seus três filhos com mandato foram responsáveis por 41,6% dos ataques a jornalistas no Brasil, segundo levantamento da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo).
A pesquisa contabilizou agressões verbais e físicas feitas diretamente a profissionais e também os chamados discursos estigmatizantes, que buscam descredibilizar e perseguir o jornalismo de modo geral.
Para o Comitê para a Proteção de Jornalistas (CPJ), a postura de Bolsonaro ao longo de seu mandato precipitou uma crise na liberdade de imprensa no Brasil.
“Com ataques físicos e online, discursos estigmatizantes, processos judiciais e abuso do poder estatal, Bolsonaro deslegitimou e intimidou jornalistas, ao mesmo tempo que incentivou um sentimento anti-imprensa por parte das autoridades públicas e dos seus seguidores”, diz Cristina Zahar, coordenadora de programa do CPJ para América Latina e Caribe.
RENATA GALF E ANGELA PINHO / Folhapress