BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Um coronel da reserva do Exército que teve ao menos seis reuniões fechadas com Jair Bolsonaro (PL) nos palácios do Planalto e da Alvorada em 2019 é o informante citado pelo ex-presidente na reunião que tratou do caso das “rachadinhas” que atingia Flávio Bolsonaro, dizem pessoas que acompanharam de perto esses episódios.
Na última segunda-feira (15), o ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal), retirou o sigilo do áudio de agosto de 2020 em que Bolsonaro discutiu o uso da máquina federal para tentar anular a investigação contra seu filho mais velho.
Na reunião, Bolsonaro se prontificou a falar com os chefes da Receita Federal e do Serpro a empresa estatal que detém os dados do Fisco no contexto de discutir busca de provas que pudessem ser usadas para provar que Flávio teve seus sigilos acessados de forma ilegal na origem da investigação.
Além do então presidente, participaram dessa reunião o seu chefe do Gabinete de Segurança Institucional, Augusto Heleno, o à época diretor-geral da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) Alexandre Ramagem (PL) e duas advogadas de Flávio, Luciana Pires e Juliana Bierrenbach.
Logo no início dessa reunião de 25 de agosto de 2020, o então presidente da República diz que quem passava as informações para ele era “um coronel do Exército” e, em uma aparente ironia, completa dizendo que deveria “ter trocado pelo serviço secreto russo”.
A seguir, Bolsonaro menciona ter esquecido o nome, momento em que Augusto Heleno diz saber quem é a pessoa, mas também demonstra certa hesitação em lembrar. Então, fala “Magela”, o que é repetido por Bolsonaro.
Pessoas que acompanharam o caso de perto dizem que a referência, na verdade, é a “Marsiglia”, sobrenome do coronel reformado do Exército Carlos Alberto Pereira Leonel Marsiglia.
A agenda pública de Bolsonaro na Presidência mostra que em seis ocasiões, sendo cinco delas a sós, ele recebeu o coronel Marsiglia no primeiro semestre de 2019, mais de um ano antes da reunião de 2020, nos palácios do Planalto e da Alvorada.
O primeiro encontro foi registrado como tendo ocorrido em 28 de março daquele ano. O último, em 23 de maio.
A única reunião de Bolsonaro com Marsiglia em que a agenda registra mais participantes é em 22 de maio, véspera da última reunião, em que estiveram presentes também os então ministros da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, e da Economia, Paulo Guedes.
A Folha procurou a defesa de Bolsonaro e o coronel Carlos Marsiglia, mas não obteve resposta ou não conseguiu contato.
Marsíglia, que havia ido para a reserva no Exército por volta de 2013 e não tinha cargo público na ocasião, é irmão de um auditor da Receita Federal do Rio de Janeiro que, ao lado de outros colegas, estava em litígio com o órgão e cujo caso estava sendo usado pela defesa de Flávio para tentar provar a tese de acesso ilegal pelo Fisco aos dados.
Ao todo, cinco auditores fiscais do Rio de Janeiro estavam sob suspeita de enriquecimento ilícito, mas afirmavam que eram alvos de perseguição interna por meio de investigações motivadas por denúncias forjadas e pautadas por acesso ilegais a seus dados fiscais.
No segundo semestre de 2020, a defesa do filho do presidente usou esses casos para entrar em contato com órgãos federais como a Presidência da República, o GSI (Gabinete de Segurança Institucional) e a Abin, além de acionar a PGR (Procuradoria-Geral da República).
A hipótese relatada ao governo e à PGR era a de que dois órgãos da Receita Federal no Rio o Escritório de Corregedoria da 7ª Região Fiscal (Escor07) e o Escritório de Pesquisa e Investigação da 7ª Região Fiscal (Espei07) poderiam ter acessado criminosamente os dados fiscais do senador e embasado, por caminhos extraoficiais, a produção do relatório do Coaf (órgão de inteligência financeira ligado ao Ministério da Economia) que originou, em 2018, a investigação contra o filho do presidente.
Em 2018, os auditores formalizaram acusações contra os colegas que os investigavam no Sindifisco, o sindicato nacional dos auditores fiscais, o que gerou um processo de desfiliação dos integrantes da corregedoria.
Flávio e outros deputados da Assembleia eram suspeitos de desvio de dinheiro público por meio da apropriação de parte do salário de assessores, entre outras irregularidades.
A operação patrocinada pelo senador e sua defesa com apoio da então máquina federal resultou em encontros com o então chefe da Receita, José Barroso Tostes Neto, incluindo um na casa do senador, em Brasília.
Como mostrou a Folha com base em documentos até então inéditos, a Receita Federal mobilizou por quatro meses uma equipe de cinco servidores para apurar a acusação feita pela defesa de Flávio.
O Fisco também solicitou uma devassa ao Serpro para tentar identificar acessos ilegais a dados fiscais de Bolsonaro, de seus três filhos políticos, de suas duas ex-mulheres e da à época primeira-dama, Michelle.
A mobilização da defesa de Flávio para tentar obter no governo federal provas de ilegalidades na origem da investigação e, com isso, anular as apurações não surtiu efeito, entretanto.
A investigação do Fisco concluiu pela improcedência das teses apresentadas pelo filho do presidente. O caso das “rachadinhas” acabou sendo revertido, mas por outras razões.
Em 2021, após alguns resultados anteriores favoráveis a Flávio, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) anulou todas as decisões tomadas pela primeira instância da Justiça do Rio. O argumento foi o de que o juiz Flávio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal, não tinha poderes para investigar o filho mais velho do presidente.
O uso da máquina pública em prol de Flávio integra investigação da Polícia Federal sobre a existência de uma “Abin paralela” que teria espionado ilegalmente adversários políticos, jornalistas e magistrados na gestão anterior.
RANIER BRAGON / Folhapress